De pai pra filho: a bicicleta como o elo das gerações
..tinham bons 10 km de subida e depois um plano de asfalto até a chegada, onde o pedal me mostrou o quanto de fome pode ficar um menino. A disputa entre garfadas pós pedal foi bem equilibrada.
Aviso! Esse texto contém sentimentalismo, chavões, pensamentos nostálgicos, bicicletas e outras coisas bem comuns aos humanos.
Um par de havaianas pretas.
Seria esse o mais comum dos pedidos, mas não nesse caso. Meu pai antes de ser novamente internado essa semana pediu que eu achasse as havaianas para ele poder tomar banho sem escorregar. Nos seus 82 anos de vida ele nunca teve uma, não por não poder comprar, depois de tantos anos trabalhados poderia ter até mais que um par, mas calçando 48 era um desafio as lojas terem no estoque.

Eu e meu filho / © Ricardo Gaspar
Fui atrás desse desejo e como acontece nesses momentos, rebobinei a fita da saudades e das lembranças que passamos juntos. Como qualquer criança, tem momentos em que temos a certeza que nosso pai é imbatível, um super herói disfarçado. Esse instante para mim era quando o via chegar em cima da bicicleta aos domingos.
Morávamos no Alto da Boa Vista, zona sul de São Paulo, com todos os primos nas proximidades. Todo final de semana acontecia uma corrida de bicicleta entre meu pai, Tio Karin e Tio Zé. Os perdedores pagariam o almoço na semana seguinte e um tipo de aposta assim entre árabes, vale a vida.
Eles largavam cedo e nós ficávamos na porta, cada família com sua torcida. Eles usavam o que fosse preciso para chegar a vitória, murchar pneu, vácuo, fugir enquanto outro pagava conta no ponto de hidratação -que era uma barraca com água de coco e laranjas-, enfim, uma Corrida Maluca de bicicletas.
Meu pai treinava todos os dias, tinha uma Caloi 10, provavelmente muito menor que o adequado. Saía no escuro, embalado em uma jaqueta de nylon, um mocassim e meia social. Sem capacete, sem qualquer luzinha ou ferramentas, nunca soube trocar pneus. Ao retornar me falava que tinha feito duas ou três idas e voltas até o Ceasa.
Na minha idade nem imaginava onde ficava, mas tinha certeza que era próximo a Júpiter ou adjacências, contava isso para todos os amigos. Mesmo hoje depois de ter feito 200, 300, 400, 600 km, esse trajeto ainda é intangível.
Esse domingo, entre todos esses revivals, meu filho pediu pra pedalar. Escolhi uma trilha em Joaquim Egídio, próximo a Campinas, muita gente corre e pedala por lá, a trilha nem é uma das melhores ou mais bonitas que já fiz, mas também pouco prestei atenção. Meus olhos não desgrudavam do meu moleque, tentando perceber que sensações ele teria.
Percorremos os 25 km da Trilha do Bar da Cachoeira, que pra minha surpresa, não tinha Cachoeira, tinham bons 10 km de subida e depois um plano de asfalto até a chegada, onde o pedal me mostrou o quanto de fome pode ficar um menino. A disputa entre garfadas pós pedal foi bem equilibrada.
Não sei se o gosto pode ser herança genética, na verdade nunca pedalei com meu pai e provavelmente não pedalarei, mas talvez tenha ficado gravado na memória afetiva e fiquei pensando se talvez meu filho um dia também lembrará desse dia, mesmo que a vida tome outro rumo, que ele goste de outros esportes, talvez a bicicleta seja mais uma conexão entre meu pai, eu e meu filho.
Cheguei ao final do dia no hospital, com a havaianas pretas 48 na mão, e sai da visita com a notícia de um prognóstico muito melhor do que o esperado e com aquele ar que os cúmplices carregam.