O jornalista que se diz ciclista me atropelou enquanto eu pedalava…
Displicente! Bêbado! Vagabunda! Marginal! Desatento! Louca! Vai trabalhar! Sai da calçada! Vai para a calçada! Vai para a ciclovia! Qual de nós, ciclistas nunca ouviu tais disparates?
Displicente! Bêbado! Vagabunda! Marginal! Desatento! Louca! Vai trabalhar! Sai da calçada! Vai para a calçada! Sai da contramão! Vai para a ciclovia!
Qual de nós, que optamos por usar a bicicleta em nossos deslocamentos, nunca ouvimos algum desses bordões que ecoam pelas ruas da cidade com uma inveja transvestida de raiva, de ódio?
Qual de nós, que optamos por usar a bicicleta, nunca passou por um problema advindo dessa raiva que viaja a galope de inúmeros cavalos? Eu, até essa madrugada.
Depois de mais de 10 anos pedalando pelas ruas de Belo Horizonte, do Brasil e de outros países, fui culpado por um motorista por ser atropelado por seu carro. Ou melhor, fui atropelado por um carro e por um motorista bêbado. Consertando, por um carro, um motorista bêbado e um carona mais bêbado ainda. Para completar…Por um carro, um motorista bêbado e um carona mais bêbado ainda que, em sua legítima defesa, disse que mataria a mim e ao meu amigo após nos informar, com alguma euforia, sua função social: policial militar. Legítima defesa? Sim! Estávamos meu amigo e eu armados até os dentes com duas bicicletas, uma ótima conversa e boas risadas, no momento em que fui atropelado.
Ah…A hora do contato. Diferente de duas pessoas que se abraçam ou se beijam, o contato bicicleta e carro é covarde. É imoral. É desumano. É inaceitável.
Pois bem. A partir de agora terei de aceitar que virei parte de uma estatística que ninguém conhece bem: pessoas atropeladas que nunca darão queixa. Oras…Alguém perguntará: por que não dar queixa?
Ao me atropelar, o motorista logo fora identificado pelo meu amigo: era um jornalista conhecido da cidade que, de quando em vez, ousava-se a escrever sobre bicicletas e @s tais ciclistas. No mesmo momento, o carona desceu e veio perguntar se minha bicicleta estava bem. Eu, que acabara de ser lançada ao chão por uma pequena máquina de uma tonelada, respondi: “acredito que sim”.
O motorista (ou jornalista), se mostrou totalmente despreparado para a situação…e pudera: quem estará pronto a assumir que pode ser um assassino potencial apenas conduzindo um bloco de metal?
Ele pediu desculpas e queria a todo custo ir embora rápido…O amigo (ou policial), começou a se exaltar pelo fato de eu dizer que queria registrar um Boletim de Ocorrência. Meu amigo, que estava assutado (como eu) com a situação, começou a dizer ao jornalista (eles se conheciam) que ele estava maluco, sem condições de conduzir, que ele era irresponsável por conduzir daquela maneira, que aquilo não era atitude de um ser humano, que ele era frio.
A resposta do motorista era única e vazia: “Eu sou ciclista! Vocês estão na contramão!!!”. A do carona era mais bem elaborada e agressiva era “Fica esperto! Vou esfolar você! Vou matar vocês dois!”. A parte verbal nos assustou, mas não mais que os gestos ameaçadores dele com os dedos em formato de arma apontando para nós e, para piorar, a ação dele de querer puxar algo atrás da calça…bem ali na cintura…onde as pessoas que portam armas colocam esse instrumento de legítima defesa para momentos de altíssimo risco, como aquele que se passava.
Imagem: CarFree
Eu insisti que ligaria para a polícia. Me senti ridículo tendo que recorrer a tal instituição, mas estava disposto a não deixar em branco o episódio. A coersão do carona tocou meu limite. Senti que ou eu continuava a tentar ligar para a polícia (é muita ironia!) ou minha vida e do meu amigo passariam a estar em (mais) risco, agora com uma segunda arma naquele tabuleiro urbano.
Em algum momento, o jornalista, querendo justificar alguma coisa, disse “amanhã sairá uma matéria sobre o aumento 35% de acidentes com ciclistas na cidade! É matéria minha!”. Eu pensei comigo mesmo: “sexta-feira eu dei uma entrevista para um jornal cujo profissional que me ligou insistia com esse dado de 35%, mesmo eu me esforçando para desconstruí-lo, a partir de outros dados oficiais”.
Seria muita coincidência eu ser atropelado pelo jornalista que me ligou para falar do aumento no número de acidentes com ciclistas em Belo Horizonte. Pois bem. Era a mesma figura. Não resisti e disse: “cara, você atropelou uma das suas fontes para a matéria que você fez!”.
Durante toda a confusão, que não durou mais de 5 minutos, ouvi de uma janela próxima uma voz acolhedora que dizia: “se é carro contra bicicleta, a culpa é do carro!”. Adorei ouvir aquilo. Me acalentou.
O motorista e seu carona, esse a contragosto, entraram no carro e foram embora acelerando, como de praxe. Meu amigo e eu ficamos ali, na rua Mármore, nosso caminho de anos e anos, mais alguns minutos tentando entender toda aquela insanidade. Reparei que minha perna estava esfolada, além de um amassado no pedal direito da bicicleta. Hoje pela manhã descobri que minha clavícula estava ruim. Certamente não fui por conta do colchão no qual eu dormi.