Rota Márcia Prado: clandestino é o esquecimento
Os registros de uma descida ciclística de São Paulo a Santos pela Rota Márcia Prado, além de um panorama sobre essa história tão importante para os ciclistas de todo o Brasil.
Quando criança, a bicicleta me acompanhava nas férias de verão. Já com o carro tomado pela maresia, eu sabia que dali a poucos minutos estaríamos livres da lataria, de pés na areia, e eu com uma bicicleta. Alguns anos usei bikes alugadas, outros pegava emprestada do meu primo, e não me lembro em que verão conheci a Brisa, uma Monark amarelinha que em outras épocas era levada pelas pernas da minha mãe.
Todo Ano Novo era assim: eu, o mar e uma bicicleta. Então voltávamos motorizados para São Paulo, e assim eu ficava até receber um novo chamado das marés. Usando a bicicleta no dia a dia da cidade, às vezes me pego pedalando um planalto como a Avenida Paulista devaneando que ao fim da ciclovia irei chegar na praia. Doce ilusão.
Agora, imaginem vocês a emoção de começar um domingo pedalando na Av. Dona Belmira Marin, e terminar (ainda antes do Sol se pôr) com os pés na beira do Mar. Já fazem algumas semanas que descemos a Serra do Mar com destino a Santos, eu e alguns ciclistas que eram amigos da Márcia Prado. Descemos, inclusive, pela rota que leva seu nome como uma singela homenagem.
Márcia Prado foi uma ciclista muito importante para a mobilidade ativa em São Paulo, mais ainda, foi muito importante para dar rosto e nome para as milhares de pessoas que pedalam pelas ruas da cidade todos os dias. Márcia morreu atropelada por um motorista de ônibus na Avenida Paulista quando uma ciclovia por ali era só “mimimi de gente pobre que não tem carro”. Em 14 de janeiro de 2009, o corpo de Márcia ficou por horas no asfalto quente da avenida ícone dos paulistanos. O cartão postal precisou chegar manchado de sangue para perceberem que bicicletas transportam vidas.
A Rota Márcia Prado em si pode ser divida em trechos (veja mais detalhes), alguns reconhecidos pelo poder público e outros esquecidos; negligenciado seu potencial turístico, ecológico e humanitário. Partimos da estação Grajaú, Zona Sul da capital. Aproximadamente 6 Km de pedal e embarcamos na primeira balsa que dá acesso a Península do Bororé, uma Área de Proteção Ambiental. Nesse grande trecho de estrada de terra, cruzamos algumas cidades do ABC Paulista pelas partes mais rurais desses municípios.
Pegamos mais uma balsa e era hora de encarar o acesso a Rodovia dos Imigrantes, geralmente feito na altura do quilômetro 38. É nesse trecho de asfalto que a Polícia Rodoviária costuma parar os grupos de ciclistas para impedir um possível acesso a estrada de manutenção, parte mais significativa da Rota Márcia Prado. Uma vez dentro da estrada de manutenção, a Baixada Santista é um destino quase certo.
Foi nessa estrada que eu entendi como de fato a bicicleta pode te levar a qualquer lugar. Pela primeira vez eu não estava com a magrela nem na cidade, nem na praia, estava pedalando na estrada; exercendo o meu direito de ir e vir, e de bike. Que coisa maravilhosa e transformadora!
Conversando com os ciclistas que estavam juntos nessa aventura, em especial com uma amiga mais próxima da Márcia que hoje considero também minha amiga, soube de algumas descidas ciclísticas gigantescas que já aconteceram por lá. Desde que a Rota Márcia Prado ficou conhecida, e oficializada no trecho São Paulo pela Lei 15.094, a rota atrai ciclistas de todo o país, não apenas pelo seu simbolismo, mas também porque o Brasil tem poucas rotas de cicloturismo. Quem dirá o Estado de São Paulo.
Me parece existir uma cegueira generalizada do valor (financeiro e social) de percursos que promovam uma cicloviagem segura. E ai entra o jeitinho brasileiro: se um trecho da estrada de manutenção desmoronou, se a parte que cruza a cidade de Cubatão é perigosa, se há falta de sinalização; então proíbe-se!
Ano a ano, quando o encontro que já reuniu quase 10 mil (DEZ MIL) ciclistas começa a ser organizado, ou ele acontece de forma clandestina (como foi a nossa descida), ou ele não acontece por algum empecilho posto pela concessionária Ecovias.
Nossa descida foi especialmente abençoada, é preciso admitir e agradecer. Em um grupo de quase 20 ciclistas, não tivemos um só pneu furado durante toda a viagem. Do ciclista mais experiente que pedala longas distâncias com frequência, a ciclista novata com uma bike simplona, todos pedalaram no mesmo ritmo sempre. Até mesmo no trecho que precisamos cruzar as cinco faixas da Rodovia dos Imigrantes para acessar a Anchieta e entrar na cidade de Santos, foi tudo em sincronia.
Algumas falas que ouvi nessa cicloviagem me deixaram profundamente marcada, não só pelo que disseram no momento em que foram ditas, mas pelo que ainda estão dizendo ao ecoarem em meus pensamentos. Nesse momento me vem a fala da minha grandessíssima amiga Julia: “Parece que conheço todos eles há muitos anos, mas eu não sei o nome de quase ninguém”. Sim, eu pensei. Se um pneu tivesse furado, se alguém tivesse caído, se nem na estrada de manutenção tivemos entrado, eu tenho certeza que ninguém ficaria no asfalto sozinho.
Talvez seja esse o poder da bicicleta: nos permitir ver pessoas antes de nomes, status e crenças. Se eu pedalo, e tu pedala, então pedalamos. E desse verbo se conjugam muitas história. Márcia Prado morreu, atropelada como tantos nesse país em guerra no trânsito, mas sua história continua viva, e vive nas tantas outras que cruzam os quilômetros que um dia ela pedalou.
Desejo que todos tenham a oportunidade de conhecer essa rota, de conhecer todas as rotas de bicicleta. Vamos ter que trabalhar muito!
Nesse sentido, vale dar uma olhada no Projeto de Lei nº 569/2017, de autoria do deputado estadual Davi Zaia (PPS), que pretende regulamentar a Rota Márcia Prado em toda sua extensão, uma vez que apenas a parte que compreende o município de São Paulo é hoje amparada pela legislação.