Para lavar a alma – Uma cicloviagem pelo Caminho dos Anjos, em MG
O Circuito do Caminho dos Anjos fica nas Terras Altas da Mantiqueira, um trajeto circular que passa pelas cidades de Passa Quatro, Itamonte, Alagoa, Aiuruoca, Baependi, Caxambu e São Lourenço.
Segundo Walter, que acompanha todo o desenvolvimento da rota, o criador Alexandre Gaspar percorreu o caminho em busca de um encontro espiritual e ao terminar a rota, analisando a forma que foi acolhido pelas pessoas, a beleza dos lugares por onde passou e para propagar a sustentabilidade e contemplação, batizou de Caminho dos Anjos.
Não existe hoje uma associação oficial cuidando do circuito, não tem credencial ou carimbos, mas já há um movimento para que isso aconteça, combinado com o trabalho de artesãos locais.
Quando falamos no poder transformador de uma cicloviagem, além de você passar a ser o seu próprio meio de deslocamento entre os locais, o que está inserido nessa experiência vai muito além do visual e do esforço físico, passa pela imersão na cultura e hábitos locais, no entender da história e dos pontos de atração, no fomento do pequeno produtor e no olhar para dentro.
Nosso ponto de partida foi em Passa Quatro, mas é possível iniciar em qualquer ponto, só preste atenção na hora de dividir a rota, pois alguns lugares têm pouca estrutura de hospedagem. De bicicleta, três a cinco dias são suficientes, a pé pode ser realizado em 10 dias.
Dia 01 – Passa Quatro/Alagoa
65 km – 1500 mts alt
A cidade de Passa Quatro tem a estação de trem como fundo e curiosamente existem muitas torneiras de fonte natural espalhadas pela cidade, dizem que leva esse nome porque o rio cruza quatro vezes o local, o ponto de referência para tudo é a Ponte Barriguda.
Fomos em direção a Itamonte e encontramos a Cachoeira do Vô Delfim, no Rio Verde, batizado assim pela cor verde esmeralda da água, é possível parar alguns minutos para baixar a temperatura e recuperar as energias que serão necessárias um pouco mais a frente.
No quilômetro 21, a Placa do Parque Estadual da Serra do Papagaio avisa o início de um longo trecho de bloquetes. Com infinitos 21 kms, esse é o primeiro grande desafio da jornada, e as altas temperaturas são mais um desafio. Existem alguns poucos estabelecimentos durante a subida, use as paradas para se hidratar e continuar.
O trecho final é tranquilo até chegar a cidade de Alagoa, famosa pela receita do queijo Parmesão. Nós optamos por ficar um pouco mais a frente, na Pousada da Pedra da Mitra, fomos resgatados na Padaria Centra pelo Lilo.
A recepção do casal é um banho de humanidade, recebemos hospedagem e acolhimento, as instalações são simples e o Jesus 2.0, como é conhecido no local, por transformar água da nascente em cerveja de ótima qualidade. Na varanda, ao lado do incansável border collie Bill, degustamos os três tipos produzidos ali mesmo, acompanhado com queijo da região.
Para o jantar, foi preparado uma truta com alcaparra no forno a lenha, que também é utilizado para aquecer a água do chuveiro, ou seja, nem tente entrar na água se o forno não estiver quente, garanto que a água é congelante.
Foi um dos finais de tardes mais lindos que vi, fomos dormir sob o céu estrelado, em um local onde a paz conseguiu um bom tempo para ficar.
Dia 02 – Alagoa/Cachoeira dos Garcia
50 km – 1530 mts alt
Céu azul e seguimos viagem, no início é só descida até voltar a cidade e entrar novamente na rota oficial, seguimos por 30 km com a companhia do Rio Aiuruoca, subidas e descidas até o km 32, mas quando saímos de Aiuruoca são praticamente só subidas até o km 46, começando no asfalto, indo para terra, até chegar o temido pé de moleque.
É possível durante o caminho fazer uma parada junto ao rio, avançando cinco quilômetros no Km 23 vale um mergulho no Pocinho, onde algumas pequenas quedas formam duas grandes piscinas naturais, onde curtir a água gelada e natural trazem a alma de volta ao corpo.
Seguindo a altimetria pelo GPS e analisando nossa planilha de dados, é impossível acreditar que há um ganho acentuado no curto espaço de 10 km que faltam, e te garanto que tivemos. E a Pedra do Pico do Papagaio está lá, onipresente, durante todo o caminho, nos observando enquanto seguimos subindo metro a metro.
Na placa de Parque Estadual da Serra do Papagaio, haverá uma sinalização de 9 km até a Cachoeira dos Garcias, a distância é um pouco menor, mas o trecho é duríssimo, prepare-se para descer e empurrar bastante a bicicleta.
O calçamento pé de moleque é feito de pedras sem qualquer padrão, soltas no piso, e além da subida inclinada, manter a bike em linha equilibrada é uma dificuldade, pois as pedras te jogam de um lado para o outro. Persista e continue!
Existe um ponto de apoio na metade da subida, não espere grande coisa, é um container verde com informações do parque, quando passamos estava fechado, mas pare um pouco para descansar.
Vale uma parada no km 43, na pousada Canto das Bromélias, vá até o deck de madeira, você encontrará algumas siriemas no jardim, e já é possível ter uma visão de cima de toda região, tome água e siga mais 3 km até a entrada do Hostel Casal Garcia e Cachoeira dos Garcia.
A chegada tem uma boa descida, que fica impossível de não lembrar que teremos que subir no dia seguinte, o hostel tem energia elétrica há apenas quatro meses, e foi recém construído um anexo para hóspedes que dormem em quartos comunitários e banheiros compartilhados.
Chegamos com o tempo abafado e alguns pingos de chuva lavando nossa alma, a sensação de realização e de tarefa cumprida, mias o visual, mexe com todos nossos sentimentos.
É possível de dentro do restaurante sentir a força da cachoeira dos Garcia, considerada uma das mais bonitas do Brasil, um lugar desenhado a mão; as nuvens, o vale, o som da cachoeira e o vento fresco das montanhas são inexplicáveis.
O restaurante é comandado pela Renilda com pratos lindos e deliciosos, a truta faz as poucas mesas serem disputadas aos finais de semana. A cachoeira fica a 100 metros e existem duas “prainhas” com piscina natural para uma merecida recuperação, acreditávamos que o mais difícil já tinha passado e que dificilmente encontraríamos algo mais bonito.
O quarto tem grandes janelas para que você seja acordado pelo sol, que desenha uma enorme faixa laranja cortando o céu entre as montanhas e as nuvens, contemple e agradeça esse presente.
Dia 03 – Cachoeira dos Garcia / São Lourenço
74 km – 1490 mts alt
Depois de tanto subir, iríamos finalmente descer. Descemos muito, mas….
Faltava ainda algumas subidas pela frente, as pedras voltaram, e por três ou quatro quilômetros só subimos, até chegar ao local com maior elevação do circuito: 1900 mts! No Vale do Gamarra o terreno é composto por grandes pedras e o visual é impressionante. Começa a sonhada descida.
Desceremos 1800 mts, mas o terreno exige habilidade e muito cuidado; há pedras soltas, valas e grandes pedras que fazem a velocidade ser praticamente a mesma que na subida, e em alguns lugares descer da bike é a única opção.
A Casa Rosa é um dos poucos pontos de apoio nessa etapa, para chegar lá enfrentamos a pior subida na terra. Se tiver com tempo pare para almoçar, é um dos anjos do caminho, saindo pós reabastecer as caramanholas, mais uma boa subida e duas cachoeiras até Baependi, Inferninho e Caixão Branco.
Nós decidimos almoçar em Baependi, o trajeto até São Lourenço fica bem mais suave, muitos trechos planos e alguns da Estrada Real, a sinalização não é muito boa, é preciso presar atenção nas entradas.
Chegamos a terra das águas e todas suas propriedades de cura.
Dia 04 – São Lourenço / Passa Quatro
55 km – 900 mts altimetria
Não existe dia fácil, mas o último dia vem como um balsamo, subimos na saída da cidade, onde é possível encontrar duas lojas de bike para qualquer eventual reparo e depois seguimos por quase 30 km de boas retas e subidas curtas, em meio as sombras das árvores de um trecho da Estrada Real.
O visual já não é o mesmo dos outros dias, passando o Vilarejo Porto, teremos uma serrinha de 4 km, com uma inclinação amiga, a visão das montanhas volta e temos uma descida longa até a chegada com a visão de Passa Quatro entre as montanhas.
O Caminho dos Anjos tem uma beleza, energia e acolhimento humano singulares e em quatro dias é possível viver diferentes emoções, que é um dos propósitos de uma cicloviagem. Sempre vale buscar profissionais que facilitem essas experiências, existem lugares distantes e com pouca estrutura onde qualquer eventualidade sem um planejamento pode encerrar prematuramente essa vivência.
Uma cicloviagem é sem dúvida transformadora, uma forma de purificação; entramos carregados, e a natureza e as pessoas do caminho nos entregam muito melhores do outro lado. Todos nossos bens materiais sujam, empoeiram e nossa alma sai limpa e leve.
Faça uma cicloviagem!
10 Coisas Imperdíveis do Caminho dos Anjos
– Lojas de queijos e produtos de Minas da Estação de Passa Quatro (compre na volta);
– Um mergulho na piscina natural do Pocinho;
– A Cervejaria do Lilo e Letícia na Pedra da Mitra em Alagoa;
– O visual no deck no Canto das Bromélias;
– A cachoeira dos Garcia;
– O amanhecer no Hostel Casal Garcia;
– A truta da Renilda;
– Um minuto em silêncio no Vale do Gamarra;
– O Almoço na Casa Rosa;
– Parque das Águas em São Lourenço.