A bicicleta na cidade grande: o surgimento de uma cultura ciclística urbana à brasileira
Artigo com apontamentos sobre a cultura da bicicleta que se consolida no Brasil. Publicado originalmente em 2014, e revisado para ser lançado agora pelo Bike é Legal.
O texto a seguir foi publicado originalmente no número 25 da Mediação, revista editada pelo Colégio Medianeira, em Curitiba, no segundo semestre de 2014. Embora não trate diretamente do assunto, o otimismo do texto é muito influenciado por gestões municipais muito mais atentas à importância da ciclomobilidade do que as gestões que as sucederam, tanto em Curitiba quanto em São Paulo.
Escrito para um público não especializado, o texto traz à reflexão uma porção de temas caros a quem pedala nos grandes centros urbanos. Alguns desses temas estão mais desenvolvidos e outros estão resumidos em uma única afirmação provocativa. E como as mudanças para as quais o texto aponta são lentas e graduais, quase 3 anos depois de escrito ele segue ainda muito atual! Vejamos…
‘Tá! Tudo bem, tatú do bem! Quando o tema está muito em voga, o assunto fica logo batido. Mas desde quando, afinal, este tema está em voga? Eu, mesmo, já nem sei dizer. Quando vim morar em Curitiba, por exemplo, nos idos de 2001, eu já utilizava a bicicleta como transporte e o fato é que as ruas da cidade eram muito hostis ao ciclista. Os ônibus praticavam o tempo todo as “finas educativas” – nome odioso dado a este ato de grave ameaça à vida humana – e as buzinas e ofensas eram constantes. Eu vivera em Paranaguá durante os anos 90 e a bicicleta era, de longe, o meio de transporte predominante. Ainda é. Nas cidades interioranas do Brasil tem sido assim há décadas.
E aqui na capital paranaense, nestes últimos anos, a mudança é radical. A onipresença da bicicleta nas ruas obriga o motorista ao respeito. As muitas campanhas, o envolvimento da mídia, as recentes ações da administração pública (como a via calma da Sete de Setembro e os ainda tímidos implementos à malha cicloviária), a palavra de boca em boca, o somatório das experiências individuais de descoberta da viabilidade e do prazer de se locomover de bicicleta, tudo isto tem colaborado para um ambiente mais amigável ao ciclista e para uma verdadeira tomada das ruas pelas bicicletas. E pedalar é uma experiência geográfica marcante! Descobre-se a cidade por baixo dos prédios, suas montanhas e seus vales. Para o indivíduo que se permite arriscar, isso é muito transformador.
Por outro lado, o automóvel particular encerra um desperdício energético brutal, evidenciado pelo dado elementar de que, ao dirigir sozinho, um ser humano põe em movimento, em média, uma tonelada de matéria bruta, para transporte de seus singelos oitenta e poucos quilos. A razoabilidade da bicicleta se expressa na sua leveza e agilidade. No trânsito, é comum que os motoristas se assustem com a bicicleta que se aproxima veloz de um cruzamento. O adulto motorista vai esquecendo o que seu corpo, na infância, sabia muito bem: o toma-lá-dá-cá mágico da inércia. Habitua-se ao peso, à lentidão do enfileiramento das carcaças, ao disparate material de um congestionamento.
Mas chega de proselitismo! A mudança radical de contexto que estamos experimentando já nos permite avançar na conversa.
Temos os primeiros indícios do desenvolvimento de uma cultura ciclística própria deste contexto atual, metropolitano e brasileiro, do crescimento do uso da bicicleta como transporte na cidade grande, e já se distinguem suas feições. É possível pensar a cultura ciclística de que falo a partir de seu paralelo com a cultura automobilística. Ela é menos elitista, mais difusa e não irradia necessariamente do modelo de desenvolvimento urbano norte-americano, como no caso do automóvel. Como prática cotidiana e funcional, é menos visível para quem está imerso nela, tanto mais quanto esteja de fato imbricada nos hábitos diários. Por isso muitas vezes é difícil para o ciclista da cidade grande reconhecer os traços comuns da crescente multidão à qual pertence.
Mas nos lugares onde esta cultura está melhor estabelecida, temos a predominância de determinadas características para as bicicletas, vestimentas, alternativas de transporte de carga, etc… Nas cidades do interior do Brasil, por exemplo, onde sempre se pedalou como transporte, o mais comum são bicicletas com relação simples, ditas “sem marchas”, de quadros de aço carbono. Bicicletas que têm provado sua durabilidade e confiança anos a fio. O trânsito mais tranqüilo das cidades pequenas permite a cena clássica da família sobre a bicicleta: o pai pedalando, a mulher sentada de lado na garupa, um filho no colo e outro numa cadeirinha presa ao guidão, ou “no cano” mesmo.
Os modelos “barra forte” e “barra circular”, das marcas Caloi e Monark, respectivamente, embora tenham perdido muito em qualidade nas suas versões mais recentes, ainda são a regra. Paralamas e outros implementos de caráter utilitário também são sintomáticos da maturidade desta cultura: as pessoas se apropriam dos objetos, modificando-os conforme diretrizes estéticas ou funcionais.
Um exemplo interessante dessa apropriação nas periferias das grandes cidades é a tendência de transformar as bicicletas segundo um padrão de modificações que se costuma fazer em automóveis: “rebaixar”, adornar as rodas, instalar suspensões pesadas visando um aspecto de robustez, na grande maioria das vezes em prejuízo da funcionalidade e eficiência da bicicleta. A distinção social brutal promovida pelo automóvel deixa, aí, sua marca.
Entretanto, o uso diário da bicicleta num grande centro urbano requer uma especialização da indústria que, no Brasil, vai sendo alcançada a passos lentos. No contexto atual, fica cada vez mais evidente o abismo criado por uma segmentação de mercado que, à semelhança do que ocorre com os eletrônicos, cria ampla oferta de produtos de baixíssima qualidade, praticamente descartáveis, inflacionando o segmento imediatamente superior. Este, por sua vez, distingue-se do nível mais baixo apenas porque sua durabilidade é suficiente para que siga sendo funcional por um prazo significativo. Ainda como no caso dos eletrônicos, este segmento inferior destina-se quase que imediatamente ao lixo e sua produção e comercialização são das manifestações mais vis e irresponsáveis do caráter acéfalo dos mercados e do livre “empreendedorismo” industrial.
Além do desperdício de aglutinar metais e plástico para componentes que durarão muito pouco servindo àquilo para que foram fabricados, estas bicicletas frustram a experiência das pessoas com o aparelho. Criam a impressão equivocada de que bicicletas são máquinas ineficientes, trambolhosos transtornos. Lamentável, numa época em que a tecnologia do ciclismo não cessa de evoluir e, com um mínimo de orientação, é possível adquirir um maquinário relativamente barato e perfeitamente funcional.
Na Europa, em cidades cuja adoção da bicicleta como meio de transporte é absolutamente majoritária, o estágio mais avançado de industrialização faz com que predominem bicicletas essencialmente simples e duráveis, cujos componentes são fabricados muitas vezes em escala artesanal, para atender aos mercados locais. Há uma ampla oferta de acessórios, bagageiros, alforjes e reboques para transporte de crianças. Impressiona o ciclista urbano brasileiro a simplicidade das bicicletas de Copenhague, de Amsterdã: “Pretas”, inexpressivas. É que a nossa referência de bicicleta boa ainda são as bicicletas esportivas, que se opõem às entulháveis “bicicletas de supermercado”, usadas um par de vezes e destinadas à poeira dos bicicletários de condomínio.
Escrevo este artigo enquanto faço uma viagem que tem ares desta cultura ciclística urbana em ascensão, da qual estou falando. Indo a Belo Horizonte, embarco minha bicicleta no avião, despachada num volume compacto, preparado no próprio aeroporto, em cerca de 30’, utilizando uma bolsa flexível, específica pra isso, que pesa, vazia, em torno de 1 quilo. Despacho, também, os alforjes de uso diário como bagagem convencional. Tudo fica ainda muito aquém do limite de peso franqueado. Em Confins, monto a bicicleta e pedalo o trecho de 45Km até Belo Horizonte. As alterosas mineiras, mesmo aplainadas no entorno da metrópole, são um desafio. Não fosse minha vontade, disposição e disponibilidade de tempo para encarar a empreitada, poderia ter tomado um ônibus carregando a bicicleta ainda embalada e empreender apenas o deslocamento urbano.
Devagar, vão se popularizando as práticas, vão acabando os ineditismos: o pessoal da companhia aérea lidou com bastante naturalidade com o fato de que eu despachava uma bicicleta. Cada vez mais, os prédios comerciais dispõem de bicicletários e a pergunta provocadora que eu costumava fazer: “- mas ninguém vem de bicicleta aqui?” fica sendo só uma lembrança jocosa. Esta cidade porvir, transformada – quem diria? – pela bicicleta, seguirá com as suas muitas mazelas. mas o trânsito há de ser mais limpo, mais silencioso, e a presença aberta dos corpos nas ruas tornará o espaço urbano essencialmente mais humano.