Poética: De bicicleta, eu sou São Paulo
Texto poético da leitora do Bike é Legal, Julia Guadagnnuci. Uma declaração de amor a bicicleta e a cidade de São Paulo.
Texto enviado pela leitora Julia Guadagnnuci
As latarias se acumulam em corredores prateados. O calor evapora do asfalto, no chão só restam as sombras das placas. Me escondo nessas minúsculas ilhas e alterno a parte do corpo que será protegida a cada parada. Meus olhos ressecados de fumaça e cegos com o reflexo dos espelhos gigantes que nos emparedam, meu ombro avermelhado, minha cabeça quente.
Sou um corpo vulnerável, suado, exaurido, elétrico, nu. Não tenho nada para me esconder. Estou ali, expondo minha coragem e fraqueza. O barulho das vespas de corredor é aterrorizante. Elas vem em um enxame desesperado, abrindo caminho com o zunir constante do motor e das buzinas, cortando com tesouras afiadas os espaços vazios, correndo atrás do tempo.
Ao lado, as minhocas solitárias se arrastam em ritmo. Parar, continuar, parar, continuar. Desce, sobe, sai, entra, enche, esvazia. Recheia seu interior com diferentes cores, sons e sentimentos. Uma mão passeia pelo vento, um sonho está a passeio, entre quebradas e continuidades, a grande centopeia segue o fluxo do trabalho. Das quatro as quatro da manhã, todos os dias: as mesmas caras, o mesmo caminho. O mesmo. Ao meu lado, ela digita, come um salgadinho, lixa a unha, bebe suco gelado. Ele também.
Dentro da capsula estão confinados a sua própria realidade, ao fluxo incessante dos pensamentos, o si mesmo. Estão do meu lado, mas são intocáveis. Possuem um mundo próprio: isolado, surdo, cego. Não sabem o cheiro podre do Rio Pinheiros, não sabem como é quente na Consolação, não sabem como venta na Paulista, como é bonito o por do sol. Como São Paulo está ferida. Como São Paulo é agressiva. Como São Paulo chora. Como São Paulo implora amor.
Em baixo, na terra, os túneis traçam uma rota quilométrica. São Paulo é grande pra baixo. São Paulo é profunda. A multidão desce e sobe dos buracos em esplendida maestria. A música é agitada, alucinante. Abre os caminhos e se misturam e se encontram, trocam suas posições, seguem a viagem. Entrou dia, sai noite, entrou sol, saiu chuva. Ali é uma outra realidade, com um tempo-espaço próprio.
Mas entre os robóticos automóveis, existe uma costura sutil, uma linha ligeira que atravessa quilômetros no silêncio do giro das rodas, nas batidas do coração, no movimento. Em um ritmo constante, encontra-se o equilíbrio. Um corpo que se move pela vida. Um movimento que gera vida, energia, transformação. Para seguir preciso confiar. Confiar que o esqueleto frágil, flexível, articulado vai percorrer as distâncias em seu próprio tempo, sentindo o espaço, o tempo, a pulsação. E ele consegue.
Sinto a cidade em minhas entranhas. Sou São Paulo. Sou o rio que fede, o bueiro entupido, o deserto de pedras, a poluição, o barulho. Sou o vento que refresca, a chuva que lava, o sorriso da moça de saia de bolinhas, a borboleta que cruzou meu caminho. Sou esperança, sou amor e ódio. Entre linhas retas, entre tantas prisões, encontro liberdade. Me encontro. Encontro meu silencio sem palavras, a batida do meu coração, a respiração. E no caminho, as subidas me ensinam que tudo passa. Tantas coisas deixo pra trás, lugares, olhares, curiosidades. Desapego dos meus sentimentos, do meu cansaço, não há permanência, tudo passa. A subida logo é descida, a descida logo é subida. Tudo se transforma.