Cicloturismo: Ajustando o olhar para aproveitar melhor a viagem
"Quando comecei a viagem, a ideia era cruzar de Buenos Aires a Mendoza em linha reta, parando apenas para descansar. Que bom que sou do tipo que muda de planos!"
Em 1995 o Santos precisava de um milagre para avançar à final do Campeonato Brasileiro. Após perder por 4×1 no Maracanã, o meu time do coração precisava vencer o Fluminense por três gols de diferença no jogo de volta em SP. Eu tinha 12 anos de idade e queria muito ir ao estádio. Meu pai, sempre ocupado e preocupado com os negócios, também queria, mas em meio a pilha de papeis e coisas para resolver me disse que iríamos à final. Quanta confiança! Isso claro sob a condição de eu passar de ano na escola, já que estava de recuperação em matemática. O Santos conquistou a heroica classificação em um jogo memorável.
Nestes mais de 20 anos “vencemos” Campeonatos Brasileiros, Libertadores e Paulistões, mas aquele 5×2 contra o Fluminense segue sendo o jogo mais emocionante da minha carreira de torcedor. Jogo que vi pela televisão. Guardadas as devidas proporções, me senti assim outro dia aqui na Argentina, vendo um grande e esperado espetáculo sentado numa poltrona, desta vez de um caminhão.
Pelas montanhas
Quando comecei a viagem, a ideia era cruzar de Buenos Aires a Mendoza em linha reta, parando apenas para descansar. Que bom que sou do tipo que muda de planos! A Argentina tem me presenteado e surpreendido com pessoas e lugares que estão me transformando. No meio do caminho mudei a rota para conhecer as serras de Córdoba, região das mais belas do país e com certeza também da América do Sul. Povo de sotaque cantado, apaixonado por mate e por jogar conversa fora. E por causa de um desses papos resolvi pegar outro rumo: o das montanhas.
Depois dos revigorantes dias em Río Tercero, onde parei para descansar e me recuperar de dores no joelho, parti rumo a Alta Gracia, cidade onde Che Guevara viveu por muitos anos. Antes, subi as serras do Vale da Calamuchita, o meu primeiro grande morro desde que saí de Blumenau-SC.
Depois de deixar para trás sem nenhuma dor ou dificuldade os primeiros precipícios, senti que eu poderia fazer qualquer coisa. Além do mais, tudo dava certo! Só surgia gente bacana, cachorros lindos e as pedaladas eram sempre acompanhadas de belas manhãs e coloridos finais de tarde. Mas quando tudo dá sempre certo o que acontece? Nos acostumamos, entramos numa zona de conforto (sim, isso existe também por aqui!) e esquecemos que não é assim que a vida funciona, seja em cima de uma bicicleta ou dentro de um escritório.
Se hoje está bom, não quer dizer que amanhã será igual
Caí nesta armadilha que nos pega quando estamos cheios de confiança. Por um instante esqueci que o amanhã é diferente do ontem, que cada dia nasce um novo hoje e uma realidade completamente diferente. E acima de tudo, é a NATUREZA quem manda. Sempre. Escrevo em caixa alta para nunca mais esquecer.
Enfim chegava a hora de encarar as Altas Cumbres, as montanhas responsáveis pela minha mudança de direção e por prorrogar a estadia na Argentina. E qual seria a surpresa em descobrir que um lugar chamado “Cumes Altos” de fato eram realmente bem elevados? O meu ego me colocou num lugar tão confiante que me deixou irresponsável. Fui displicente em não respeitar devidamente um lugar que avisa em seu próprio nome o que está por vir. Para completar, não dei bola para a previsão do tempo que anunciava probabilidade de chuva. Uma coisa é se molhar em uma estrada onde há refugio, outra é estar no alto de quase dois mil metros de altura sem lugar para se esconder.
A buena onda, como se diz por aqui, era tão grande que confiei nos meus instintos e fui imbuído pela confiança de ter recuperado a plena condição física, superado os primeiros desafios e estar sempre bem acompanhado de sorrisos e bons ventos. Quis vencer as montanhas ao invés de atravessá-las pedindo licença.
O perrengue
O dia amanhecia lindo em Alta Gracia: céu azul, sol brilhando e nuvens bem branquinhas. Os primeiros 21 quilômetros foram muito duros: uma serra bem íngreme com curvas super fechadas em ziguezague.
Parei no observatório do Bosque Alegre, onde há um telescópio. Comi e descansei por cerca de uma hora antes de voltar ao asfalto. Estar ali em cima já era um prêmio, mas o melhor e mais difícil estava por vir. Desci em instantes tudo que havia subido para cruzar as imponentes montanhas que cortam a província de Córdoba. O plano era pedalar 65km neste dia, acampar no Parque Nacional Quebrada del Condor e seguir no dia seguinte rumo a Mina Clavero. A medida que subia, as brancas nuvens escureciam. A essa altura eu já tinha subestimado completamente todo o cenário e apenas confiava que chegaria com sucesso ao meu destino mais uma vez.
As primeiras gotas vieram bem tímidas, o que só reforçavam as minhas impressões. Aos poucos fui me dando conta que eu não estava em uma simples serra, mas me encontrava em uma imensidão de montanhas que pareciam não ter fim. Entrei em alerta máximo ao ver o céu escurecendo e por perceber que estava em um lugar inóspito e muito mais complexo que eu imaginava. Os pingos se transformaram em golpes gelados, mas segui subindo até sentir que não poderia mais. Apesar do momento tenso, parei, respirei e mantive a calma. Cerca de 10 ou 15km antes havia um trailer de lanches abandonado com uma cobertura bem pequena, resolvi descer de volta o que duramente tinha subido em nome da segurança. Logo na primeira curva um caminhão guincho parou e ligou o pisca alerta. Fui diretamente em sua direção. Sérgio é o nome do anjo da vez. Ele dirigia até Mina Clavero, meu destino em dois ou três dias. Encharcado, amarrei a bicicleta no bagageiro do caminhão, arranquei os alforjes e entrei com tudo dentro da cabine. Me senti aliviado, mas instantes depois, frustrado e confuso.
Segurança em primeiro lugar, mas…
Eu estava em segurança, mas foi difícil de aceitar que estava cruzando dentro de um automóvel um trecho que eu tanto queria atravessar pedalando. A medida que o caminhão subia essa sensação se atenuava mais, já que o céu começava a se abrir e a paisagem se revelava uma das mais belas que eu já havia visto na vida. Sentia uma gratidão imensa pelo Sérgio, mas aborrecido comigo por ter sido imprudente. Estava decepcionado por não estar lá fora aproveitando o ponto mais alto e belo de toda a viagem até então.
Aprendizado
Precisei de uns dias para entender o episódio. Não quis ser injusto nem ingrato comigo, com o Sérgio ou com a viagem em si. Parei em um camping do outro lado da serra por três dias. Quando eu acordava e saía da barraca dava de cara com as altas montanhas que me deram uma surra e deixaram valiosas lições. Pude ver com muita clareza como nossa mente funciona em cenários muito positivos e como caímos que nem um pato em suas armadilhas. Ainda estou no início da expedição e certamente a natureza foi mais generosa do que traiçoeira comigo, me mostrando como devo me comportar daqui pra frente. Desafios ainda mais duros estão por vir, como a travessia para o Chile pela Cordilheira dos Andes e mais para frente na altitude da Bolívia.
Mais planejamento, humildade e respeito daqui em diante
Pedalar 100km entre cidades, com postos de gasolina, comércio e residências é uma coisa. Se chover forte tem pra onde correr. Pedalar 50km entre montanhas sem praticamente ninguém por perto, é outra história. Foi uma baita sacudida que a estrada e a natureza me deram. Merecido! Se antes aprendi a escutar os sinais do meu corpo, entendi agora que respeitar a natureza é tão importante quanto.
Até hoje lembro do Santos x Fluminense de 95 com nostalgia, mesmo não indo ao estádio. Aqui, apesar dos primeiros instantes de frustração, pude apreciar lá do alto um espetáculo muito mais lindo que qualquer jogo de futebol. Entendi que o que mais importa é viver e sentir o que está acontecendo, não importa como. Há coisas que temos que aceitar como elas são e sermos gratos por elas serem da forma que se apresentam.