Minhocão: Da janela do primeiro andar
O fechamento da via para os carros significou a abertura da mesma para as pessoas e uma cultura de uso do elevado como parque passou a crescer entre os moradores locais
Quebrando o padrão da verticalidade da cidade, uma construção robusta abre uma fenda no céu da capital paulista. Com impressionantes dois mil e oitocentos metros de extensão, o Elevado Costa e Silva foi reinventado pela população e até mesmo seu nome reflete as mudanças de uma cidade que questiona seus padrões de mobilidade e de uso dos espaços públicos.
Inaugurado em 1971 pelo então prefeito Paulo Maluf, o Elevado Costa e Silva foi apresentado para os paulistanos como um presente de aniversário, no mesmo estilo que se entrega uma bola para um filho que pediu uma bicicleta. Isso porque a engenharia da obra já era ultrapassa antes mesmo da via ser erguida. Quando o elevado foi construído, outras obras semelhantes eram derrubadas ao redor do mundo.
Mas a ideia de elevar uma via para desafogar o tráfego de carros que cruzam as regiões Leste-Oeste da capital é anterior a sua construção. Ainda nos anos 60, quando o militar José Vicente Faria Lima era prefeito da cidade de São Paulo, o projeto do elevado já era estudado, mas fora engavetado por conta da reação negativa dos moradores da região e de especialistas que planejavam o ordenamento básico da cidade para o período de 1970 a 1990.
Quando assumiu a prefeitura da capital paulista, período em que o Ato Institucional nº5 fora instaurado, Paulo Maluf desengavetou o projeto e em onze meses a região central da cidade foi engolida pela sombra imposta pela obra bruta. Da Praça Roosevelt ao Largo Padre Péricles, passando por cima da Rua Amaral Gurgel e da avenida São João, a cidade de São Paulo perdeu considerável área verde que até então era usada pela população. A construção trouxe consigo, logo em um primeiro momento, uma desvalorização não só no preço dos imóveis locais, como na qualidade de vida dos moradores do seu entorno. Até hoje, as lojas que o orbitam são abarrotadas com móveis de antigos moradores da região, que se mudaram após a construção do elevado.
Apenas cinco anos depois o uso noturno por automóveis foi proibido, como uma maneira de evitar os constantes acidentes que ocorriam durante a noite e também como uma maneira de amenizar os ruídos que invadem a vida dos moradores do seu entorno. Mas foi só em 1989 que a então prefeita Luiza Erundina determinou a proibição dos carros também aos domingos. Aos poucos a via que até então só recebia o ronco dos motores, começou a ser visitada pela população e o riso de crianças e adultos tomou lugar nas janelas das redondezas.
O fechamento da via para os carros significou a abertura da mesma para as pessoas e uma cultura de uso do elevado como parque passou a crescer entre os moradores locais. Hoje o Minhocão é um local de lazer para muitas famílias, além de receber esportista de diferentes modalidades como corrida e ciclismo.
Para Manoel Lopes de 59 anos, morador do centro há mais de trinta anos, o elevado é um verdadeiro parque. “ Chega o final de semana e é para lá que eu vou com a minha filha. Ele é muito mais perto para nós do que os parques da cidade, principalmente daqueles que permitem o uso da bicicleta em seus espaços. Eu não preciso colocar as bikes no carro. Chego em alguns minutos e quando nos cansamos estamos de volta em casa rapidamente.”, comenta o engenheiro civil por formação.
Mas apesar do grande fluxo de pessoas que frequentam o local, as opiniões sobre o futuro do elevado são divergentes e fizeram surgir ao longo dos anos diferentes movimentos em defesa de alguma solução para a obra que já nasceu condenada. A Associação Parque Minhocão, formada pela sociedade civil, acredita que o local deve ser plenamente desativado para o uso de automóveis, se tornando um ambiente de convívio social. “A associação imagina um parque linear com equipamentos sociais pontuados em seus 2,8 quilômetros de extensão. Deverão ser construídos novos acessos, com escadas e elevadores.”, explicam os representantes.
A construção de novos acessos no local é um ponto bastante importante, pois é por conta da falta deles que até mesmo o Ministério Público de São Paulo moveu uma ação pedindo a proibição da realização de eventos no elevado, alegando que a falta de meios adequados de evacuação pode desencadear um grande desastre.
Por outro lado, para Manoel, o elevado carece de eventos que promovam mais ainda o seu uso: “Eu sinto que faltam eventos lá. Entendo a questão da segurança, mas quando penso em eventos não quero dizer coisas muito grandes. Ações como a do teatro de fantoches que acontecem em uma janela próxima do elevado já fazem muita diferença.”
Querendo promover o local, Manoel que começou a estudar o fenômeno da internet ainda nos anos 90, criou um evento chamado ‘Minhocão’s Day’, no qual convida amigos para pedalarem e conhecerem o extenso espaço público que para muitos moradores de outras regiões da capital passa despercebido, apenas como mais uma via para carros.
Além da segurança no quesito acesso, o Minhocão levanta dúvidas sobre a possibilidade de assaltos tanto em seus espaço superior, como em sua base, que ocupa a Rua Amaral Gurgel. “Eu tenho muito medo que minha filha pedale durante a noite lá. Não acredito que seja bem frequentado.”, comenta Gisele.
Mas para essa questão, Manoel tem uma solução planejada. “ Eu honestamente não acho que o espaço seja perigoso. Não posso comentar sobre a frequência durante a noite, pois não tenho o costume de frequentá-lo esse horário. Mas mesmo os usuários de droga que vejo durante o final de semana não fazem nada além de ficar ali fumando um cigarro diferente, quietos na deles. De qualquer forma, acredito que o policiamento está aumento e a instalação de uma base em alguns acessos e outros agentes circulando no local já iriam inibir qualquer ação ilegal. ”, propõem Manoel.
Mas enquanto uma parcela da população pensa nas maneiras de como conseguir aproveitar mais e com mais segurança o parque quase imaginário, uma associação de moradores pede a anos há derrubada do elevado e a revitalização de toda área que ficou esquecida e apagada depois da construção arbitrária.
“É recorrente eu ver pessoas olhando para dentro de minha casa; sequer posso abrir as janelas nos horários da restrição de veículos, pois há sempre pessoas olhando.’; “Falta bom senso, inteligência e compaixão por parte de quem faz apologia desse uso indevido, pois creio que ninguém quereria em sã consciência ter uma festa acontecendo em sua janela em horas improprias.”; “Olha só, eu moro na frente do Minhocão, na altura da estação Santa Cecilia e da minha janela já pude acompanhar de tudo um pouco. O mais esdrúxulo que vi foi um lual com fogueira e tudo.”; esses são algumas das reclamações reunidas entre os integrantes do Movimento Desmonte do Minhocão.
Na atual gestão da cidade de São Paulo, o prefeito Fernando Haddad levantou algumas propostas e executou outras no intuito de revitalizar o local. Na parte inferior do elevado, que sufoca os pedestres e escurece a Rua Amaral Gurgel, uma ciclovia foi instalada após algumas reformas na base do elevado. Junto com ela veio uma política de desocupação do local por moradores de ruas, com ações que vão desde a instalação de nova iluminação, até a retirada compulsória das pessoas do local.
Com base no Novo Plano Diretor, que visa a desativação do elevado, o prefeito estendeu o período de proibição da circulação de carros aos finais de semana. Agora, a partir das três horas da tarde do sábado, o minhocão fica livre para ser usado como um espaço de lazer e até mesmo o nome ‘Parque Minhocão’ foi aprovado para quando o elevado estiver sendo usado pelas pessoas.
Surgiram discussões sobre a desativação total do elevado para o tráfego, e até mesmo um estudo apontando que a mobilidade viária na região se adequaria em pouco tempo a falta da via foi feito pela CET. “Vamos fechar por um mês, dois meses, três meses? Vamos estabelecer um prazo para ver como a cidade vive sem isso por um tempo.”, comentou Haddad em uma de suas palestras para estudantes da Universidade de São Paulo. Mas mesmo que sem carros, a discussão sobre o futuro da obra ainda levanta muitas questões e em breve a cidade de São Paulo terá de decidir se em sua nova mobilidade caberá uma obra como essa.