Caminho da Fé para se fazer sem pressa
Era a última terça-feira de agosto, o sol acabava de surgir entre as montanhas quando eu pedalava os cem primeiros metros dos 317 km que separavam Águas da Prata, do Santuário de Aparecida.
Era a última terça-feira de agosto, o sol acabava de surgir entre as montanhas quando eu pedalava os cem primeiros metros dos 317 km que separavam Águas da Prata, meu ponto de partida, do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, meu destino. Foi só nessa hora, ao lado de um florido e perfumado pé de manacá-de-cheiro, que eu me dei conta que já estava no Caminho da Fé. Sem planejamento e trazendo nas pernas só o “treino” da média diária de 20 km que pedalo pelas ruas de São Paulo, eu estava começando a minha primeira cicloviagem longa. Junto comigo, apenas a minha Trek Neko’s, sem pneus de terra ou qualquer outro acessório de mountain bike. Ou seja, uma espécie de zebra de uma partida de futebol.
A decisão veio assim como um espasmo. E, a partir dela, parece que tudo o que acontecia a minha volta era uma espécie de confirmação para que esta viagem fosse feita, incluindo um telefonema dos meus irmãos me perguntando o que faríamos com as cinzas da nossa mãe, que tinha morrido dois meses antes. Agora a viagem tinha também uma missão.
Levei menos de uma semana para me preparar. Não quis saber de muita coisa, apenas que seria bom levar duas mudas de roupa para pedalar, lenços umedecidos, meus cremes, xampus e protetor solar em tamanho viagem, além de meu ipod e meu computador. Fiz ainda uma pequena revisão na bicicleta. O básico de trocar pneus, me relacionar com as sapatas de freio e ajustes de marchas já sabia desde o Carnaval.
O que mais me empolgou no curto período de preparação foi descobrir a história sensacional do Caminho da Fé. E isso foi determinante na escolha, além, é claro, de não ter o risco de eu me perder. Era só seguir as setas amarelas, a cada dois quilômetros, e pedalar, ainda naquele meu ritmo mais tranquilão que o Haddad.
No dia da partida, botei a bike no Cometão e lá fui para Águas da Prata, onde me esperava Almiro Grings, de 75 anos. Foi da cabeça arejada e “prafrentex” dele que surgiu a rota, que é uma espécie da versão brasileira do milenar Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Depois de fazer a Carretera Austral de bicicleta, morar com os ianomâmis na floresta e fazer o Caminho de Santiago por duas vezes, Almiro sacou que estava na hora de criar algo por aqui, passando pela Serra da Mantiqueira até chegar a casa da padroeira do Brasil. Achou dois companheiros de sonho, Clovis Tavares de Lima, que hoje preside a Associação dos Amigos do Caminho e também é a pessoa que colocou todas as mais de 300 sinalizações, entre placas e setas, espalhadas ao longo da estrada, e Iracema Tamashiro.
O trajeto começou com os 317 km de Água da Prata até Aparecida, o trecho que fiz. Mas em poucos anos acabou foi ganhando outros cinco ramais (Sertãozinho, São Carlos, Mococa, São José do Rio Pardo e Aguai) e que juntos somam pouco mais de 800 quilômetros, entre São Paulo e Minas Gerais. Boa parte do trajeto é feita por estradas de terra que cortam a área rural de 32 municípios, por entre sítios e fazendas e tendo as montanhas da Mantiqueira como cenário.
Entre os feitos incríveis de Almiro, Clovis e Iracema é que eles conseguiram fazer com que propriedades privadas, incluindo uma fazenda que cria cavalos e flores raras, abrissem suas porteiras para a passagem dos mais de três mil peregrinos que anualmente completam o trajeto. “O caminho é frequentado por uma elite ética”, diz Almiro orgulhoso. “O peregrino não joga lixo, respeita o próximo e cuida da estrada. Nunca tivemos nenhum problema. E os fazendeiros da região entenderam isso desde o início.”
O mais bacana é a transformação que esse roteiro provocou na vida das pessoas e na economia da região. Tambaú, por exemplo, renasceu das cinzas. A cidade, onde os ramais que partem de São Carlos e Sertãozinho se encontram, e onde nasceu o Padre Donizete, estava lá meio que jogada as moscas. Os católicos tinham perdido o interesse em visitar o santuário do padre que fazia milagres. Mas, com o Caminho, virou um dos pontos de partida principal e, com isso, os turistas voltaram.
O mesmo vale para as 85 pousadas oficiais ao longo do trajeto. Boa parte delas nasceu de maneira quase espontânea. Um dia o morador abriu um quarto da casa para abrigar peregrinos e com eles dividiu uma refeição. A procura aumentou e a gentileza acabou virando ganha pão e elemento transformador na vida de muitos deles, que precisaram até triplicar a quantidade de leitos. Dona Natalina, na Serra dos Lima, dona Inês, em Luminosa, dona Cidinha, em São Roque da Fartura, o Maurão do bar, em Inconfidentes… todos têm histórias parecidas as quais se juntam a um componente emocional forte. “Esse é um caminho de amor. Aqui a gente tem de acolher quem chega cansado e sabe-se lá com qual dor no coração”, explica dona Natalina. “Eu tenho responsabilidade por cada pessoa que entra aqui. É uma troca, pois os peregrinos encheram a minha vida de graça e me tiraram do trabalho duro na roça.”
As acomodações são sempre muito simples, mas têm um “timing” no serviço que às vezes falta nos hotéis estrelados. Seja a comida posta na mesa exatamente no horário em que você está com fome, uma benzedeira que vem com um raminho de ervas tirar uma dor de estômago ou mesmo a roupa lavada que é entregue ao peregrino na manhã seguinte, seca e aquecida no fogão a lenha apenas para ser mais gostoso de vestir. Enfim são alguns dos serviços “incluídos” nos valores das pousadas, que variam de R$ 35 a R$ 50. A mesma gentileza também existe nas pessoas pela estrada, que repetem feito um mantra: “Vai pa Paricida? Vai com Deus, minha filha”
Some-se a isso um cenário que faz qualquer subida valer a pena, a uma vibração, que se entra já no terceiro dia de viagem, que pode ser tão produtiva quanto muitas horas de divã e principalmente a delícia de ser estar em uma estrada com a sua bicicleta.
A seguir o roteiro do dia a dia da viagem, feito com base nas subidas e levando em conta as infinitas paradas para apreciar a paisagem, descansar, fazer piquenique ou simplesmente conversar com pessoas.
Dia 1
Águas da Prata a Serra dos Lima
Distância: 49,8 km
Altitude: 1.675 m
O caminho já começa com uma subida para deixar claro o que vem pela frente, mas o clima de roça se sente poucos quilômetros depois de deixar Águas da Prata para trás. Bois, garrotes, igrejinhas e terra vermelha são as cenas mais comuns. A roubada do dia, nem foi enfrentar o paredão da Serra dos Lima, mas a chamada “Estrada dos Fuscas”, logo depois de Andradas. Ela ganha esse nome porque quando chove, diz a lenda, só esse modelo da Volkswagen consegue subir a ladeira. Então… cheguei depois da chuva. Quando comecei a subir, senti a roda patinar e achei por bem apear e empurrar. E aí foi tudo piorando. Sob a sola dos tênis, formou-se uma crosta de lama, que me impedia de dar um passo sem patinar e dificultava ficar em pé. As rodas da bicicleta travaram. Era tanta lama nos pneus, que eles não giravam sob os paralamas. Cena ridícula. Para completar, o carro que subia derrapando e com potência máxima do motor, passou em uma poça de lama exatamente quando estava ao meu lado e mais um óbvio aconteceu. Adivinha que carro era?
Dia 2
Serra dos Lima – Barra – Crisólia – Ouro Fino – Inconfidentes
Distancia: 45,9 km
Altitude: 905 m
Foi um dos trechos mais deliciosos de pedalar, cheio de umas retas daquelas que a gente faz rindo de prazer ao sentir o vento batendo no rosto e que dá até vontade de gritar de felicidade. Teve subida, sim, mas foi pouca. O que teve mesmo foi descida. E descobri que muitas vezes elas podem ser piores que as pirambas. Haja ombros e punhos, especialmente para quem desconhece as técnicas. A surpresa do dia é a chegar em Ouro Fino. O viajante é recebido, logo na entrada da cidade, por um dos monumentos mais horrendos que vi na vida. Borba Gato continua pior, mas pelo que representa! Bom, mas é engraçado. Você olha e, mesmo que não queira, começa a cantar mentalmente o hit de Teddy Vieira e Luisinho, que ficou famosos na voz de Sergio Reis. Sim, O Menino da Porteira. E como o mau gosto não tem limites, as obras de outra cena da música, O Boi Sem Coração, já começaram no centro da cidade. Inconfidentes é a próxima cidade e uma parada no bar do Maurão é obrigatória. Lá você sabe das novidades, ouve as histórias das 27 vezes em que ele cruzou o caminho e ainda diverte-se com os beija-flores que entram no bar para tomar água no balcão.
Dia 3
Inconfidentes – Borda da Mata – Tocos do Moji
Distancia: 30,5 Km
Altitude: 1.205 m
Foi um dia de enfrentar grandes subidas, mas também de ganhar confiança. Empurrei pouco, pedalei a maior parte das subidas e senti que o corpo, durante uma cicloviagem, vai ganhando condicionamento dia a dia e que a cabeça também vai entrando no ritmo. A constatação é que a gente sobe, sobe e sobe para, em seguida, descer tudo de uma vez…. Ô vida!
Embora a gente esteja em Minas, devo dizer que a viagem não foi pontuada por tantas iguarias. Mas foi em Borda da Mata onde comi os melhores quitutes de todos os dias. Não perca a Panificadora Real, na praça Antonio Megale. Cheguei em Tocos do Moji com gás para seguir em frente, mas fui aconselhada a ficar por lá, pois a roubada estava apenas começando.
Dia 4
Tocos do Moji – Estiva
Distancia: 23 km
Altitude: 957 m
Ao mesmo tempo em que as montanhas ficam cada dia mais íngremes, a paisagem vai se embelezando. Este é o trecho das plantações de morangos. Minas Gerais é o principal produtor da fruta no país, as plantações estão concentradas em 27 municípios. A região ponde passa o caminho hoje responde por mais de 72% da safra do Estado. Pensa na delícia de pedalar sentindo esse aroma. Foi a primeira vez que encontrei ciclistas pelo caminho. E, descobri com eles que tinha virado um personagem do Caminho: “a moça que vai sozinha”. Até aqui já tinha enfrentado várias expressões de espanto por eu estar sozinha e ouvido incontáveis pérolas do tipo: “seu marido deixa?”, “mulher não pode andar sozinha pelas estradas”, “mas assim a senhora nunca vai arrumar um marido”. Nem me importava, afinal vinha de gente da terra, de uma outra realidade. O que me enfureceu mesmo foi ouvir de um colega ciclista que a minha bicicleta não deveria estar ali, não servia para o terreno. Como eu estava muito de bem com a vida, apenas expliquei que ela era valente, pois assim como ele, eu também estava quase no meio do caminho com a diferença que eu carregava minhas próprias tralhas e não tinha carro de apoio. Os amigos riram da cara dele. E eu adorei aquela cena. Apesar desse momento de glória, foi um dos dias mais duros. Cheguei em pânico em Estiva, pois senti todo o percurso que precisava fazer uma força sobrenatural para mover a bicicleta. Pensei em desistir.
Dia 5
Estiva – Consolação – Paraisópolis
Distancia: 43,6 km
Altitude: 1.433 m
A Serra do Caçador é um dos pontos mais belos do caminho. Talvez isso tenha desviado um pouco a minha aflição. Pedalei menos ainda, inclusive em subidas nada íngremes. No meio do caminho já considerava ficar um dia sem pedalar. Apesar de estar muito disposta e sem dores, minhas pernas não davam conta de fazer o pedal girar. Foi quando a corrente começou a travar e senti que talvez o problema não estivesse comigo, mas com ela. Olhei, olhei, olhei e não vi nada. Mas descobri que em Paraisópolis, para a minha sorte, tinha um mecânico, desses que trabalham em qualquer horário e pegam a bike na pousada. Que alegria ao chegar na oficina e descobrir que tenho pernas fortes demais! Há dois dias, sem que eu me desse conta, a base do bagageiro escapou e foi se apoiar na catraca. Além de perder algumas marchas, fiquei com o cassete “preso”. Fiz uma fenda no aço de tanto fazer força. Ufa! Fui dormir com a certeza que iria “voar” dali pra frente.
Anote os telefones providenciais do Guto, o mecânico: (35) 3651-1020 ou (35) 8453-1536. Ele faz resgates entre o trecho Consolação e Luminosa, mas saiba que a única operadora que funciona na região é Vivo.
Dia 6
Paraisópolis – Luminosa
Distância: 28,4 km
Altitude: 1.158 metros
Se você chegou até Luminosa, por favor, suba mais quatro quilômetros para dormir na pousada da Dona Inês. A este ponto da estrada, o viajante já está em uma espécie de transe. É fácil explicar essa magia: é a santa mistura das endorfinas provenientes do esforço físico com o contato íntimo com a natureza e mais o milhão de insights que a essa altura todo viajante já teve. Hospedar-se nesse lugar é deixar a viagem ainda mais especial, ainda mais em uma noite de lua cheia, e também adiantar quatro quilômetros do trecho mais difícil de todos. Outras duas paradas obrigatórias do dia acontecem, a primeira delas, cerca de 500 metros antes de chegar ao bairro Cantagalo. Repare à direita que existe uma cachoeira É preciso deixar a bike na estrada, pular a cerca e descer um morro. Vale um soninho! A outra é no Cantagalo, no bar e restaurante Vó Elza. Dona Maria e Jucimar, seu filho, servem refeições, sanduíches e doces que saem do fogão a lenha da casa. Jucimar, que tem uma barra forte chamada Jurema, me ensinou duas coisas: como é o abraço do peregrino e que, na jornada, a bicicleta esta para o ciclista assim como o cajado esta para o peregrino: apoia na subida e ampara na descida.
Dia 7
Luminosa – Campista – Campos do Jordão
Distancia 33,4
Altitude 1.623 m
É a parte mais difícil, mas também a mais bela e mágica. Tão mágica que o esforço que se faz para superar os 16 quilômetros (a gente parte de uma altitude de 900 metros para chegar aos 1.850 metros) e chegar ao ponto mais alto da viagem, vira coadjuvante. A estrada, além de íngreme e cheia de pedras soltas, tem muitas curvas, buracos formados por erosões e é escorregadia. O resumo é que, sim, eu empurrei a minha bicicleta por mais de 14 quilômetros, mas estranhamente sem sofrimento. Ao contrário, com uma leveza e com uma alegria que nem eu consigo entender. Para mim, o caminho terminou nesse ponto mais alto. Depois, a gente entra em São Paulo de novo e aí vem asfalto e cidade grande, que é Campos do Jordão. Quando entrei na cidade, me dei conta que era a minha primeira vez no lugar e que eu chegava de bicicleta. Sorri por mais essa!
Dia 8
Campos do Jordão – Fazenda Nova Gokula
Distancia: 65,3 km
Altitude: 815 metros
A viagem poderia ter terminado no dia anterior, pois daria para sair de Luminosa e chegar a Aparecida, afinal depois de Campos do Jordão é só descida! Mas eu soube que o maior templo Hare Krishna da América Latina esta apenas seis quilômetros a frente do Caminho da Fé. Não resisti e mudei a rota para lá. Uma das melhores decisões. A Fazenda Nova Gokula (http://www.novagokula.com.br), na zona rural de Pindamonhangaba, está encravada dentro de uma reserva do Ibama. Os devotos recebem hóspedes em suas pousadas, cujas diárias variam de R$ 40 a R$ 150 por pessoa, e ainda é possível acompanhar todas as cerimônias do dia. Ao menos o mantra mais pop do mundo eu já sabia inteirinho. E foi uma experiência alegre e amorosa acordar às 4h30 para meditar com a comunidade. No dia seguinte, precisei pedalar apenas 35 quilômetros para chegar a Aparecida. Desligar o Strava ali na frente dá, sim, um nó na garganta, mas o momento mais bacana foi mesmo ir para a fila da comunhão dentro da Basílica empurrando a minha bicicleta, que ao final da cerimônia ainda foi aspergida com água benta.