BikeAmérica: Um pedal pelo Estado do Espírito Santo
Vitória, aliás, apesar de ser a capital capixaba, é só a quarta mais populosa. Na frente dela estão Vila Velha, Serra e Cariacica, que lembra música de lambada, todas da região metropolitana.
Entrei no estado molhado e mergulhado na escuridão, sem conhecer praticamente nada sobre onde estava pisando. A chuva resolveu me acompanhar em todas as pedaladas pelo estado, regando a terra seca e me fazendo refletir com as poças de água que tremiam sob as rodas da bicicleta. Enquanto os homens se protegiam em toldos, capas e telhados, árvores, pássaros, sapos, cachorros e insetos festejavam a água que caía, como se perguntassem: por que fogem da chuva?
O Espírito Santo têm 3 milhões e 500 mil habitantes e 73 ilhas, inclusive Vitória, a capital, que tem o segundo melhor IDH entre as capitais do país, perdendo só pra Floripa. E, olha só, as duas mais São Luís do Maranhão, são as três ilhas-capitais do país. Coisa linda!
Vitória, aliás, apesar de ser a capital capixaba, é só a quarta mais populosa. Na frente dela estão Vila Velha, Serra e Cariacica, que lembra música de lambada, todas da região metropolitana.
Subindo pela costa, é planície que não acaba mais, em direção ao interior, representando 40% da área do estado. A Baixada Espírito Santense dá lugar ao planalto, onde começa a região serrana, onde está localizada a Serra do Caparaó e o famosão Pico da Bandeira, o terceiro maior do país, na divisa com Minas. Até Vitória, estradas tranquilas, praticamente só pra mim. Mesmo com tempo chuvoso em toda pedalada, e talvez até por conta disso, virou um passeio agradável. Superfície praticamente plana e nenhuma distância absurda. Inclusive, alguns trechos das estradas, como no trecho entre as cidades de Anchieta e Guarapari, têm ciclovia. O Espírito Santo começou superou todas as expectativas.
A estadia em Marataízes foi uma prévia do que viria pela frente.
Sozinho no Camping do Siri, os dias passaram tranquilos. O lugar é uma enorme área de lazer na beira da praia. Tem 135 mil metros quadrados, praticamente um bosque com chão de areia e chalezinhos de madeira espalhados entre árvores. Na alta temporada, organizam festas, recebem excursões. Agora, na baixa, as praias ficam desertas, um silêncio real, só árvore e pássaro, galo, areia, um bucolismo que acalma qualquer um. Nessa época do ano, o dia acaba cedo, às cinco e pouco da tarde. À noite, sentado no chão do chalé ou deitado na rede, passava as horas lendo Jack Kerouac. Apesar da chuva e do frio, assim como Ray Smith, personagem do livro Vagabundos Iluminados, eu dormia quente como uma torrada dentro do saco de dormir.
Na hora de acertar as contas, lá vem a surpresa. O desconto que tinham me dado quando cheguei no camping se transformou em cortesia. Não paguei nem o almoço que comi com a galera que trabalha por lá.
De Marataízes até Guarapari a viagem seguiu tranquila, passando pelas pequenas Itapemirim, Piúma e Anchieta. Domingo, chuva. Dia perfeito pra ficar em casa. A estrada era praticamente só minha. Nas cidades, alguns botecos abertos e quase ninguém nas ruas, tirando os mountainbikers aproveitando as trilhas encharcadas de lama.
Quando passava por Anchieta, o tremelique da bike na estradinha de terra foi a gota d’água pra quebrar o suporte que prende o bagageiro da frente no garfo. Com o peso dos alforges, o bagageiro caía pra frente, forçando o cubo da roda. Amarrei uma corda, que segurou a bronca até Vitória. Sem conseguir a peça em lugar nenhum, tive que apelar. Chamei meu pai. Ele me envia um desenho em algumas horas e duas pecinhas depois de uns dias.
Em Guarapari, de novo molhado à noite, que já tava virando rotina, fui acolhido aos 45 do segundo tempo na casa de Alina, uma paulista que foi buscar paz de espírito no lugar certo. Ela é amiga de Cléber, que que conheci pela internet e fez o meio de campo, músico gente boníssima que já tocou com Ed Star, parceiro de Raul na Sociedade da Grã-Ordem Kavernista. Fui pra casa dela distante 10 quilômetros do centro da cidade, sentido norte, na praia de Setiba, e não voltei mais pro centro.
Dali pra Vitória foi um pulo. O único problema foi que subi pelo litoral. Seguindo a avenida costeira em Vila Velha, tem a Terceira Ponte, principal elo de ligação com a capital. Era só cruzar por ela e em 10 minutos chegaria ao hostel, mas bicicleta ainda não é permitida na ponta. Pedalei oito quilômetros pra dentro, acompanhando o Rio Santa Maria, na Baía de Vitória, cruzei pela Segunda Ponte, pedalei mais oito quilômetros de volta já na ilha de Vitória, cruzei outra ponte no norte e cheguei ao Bairro de Camburi, já no continente novamente, embaixo de uma chuva que me fez perceber que a jaqueta não é mais à prova d’água.
O mestre do litoral do Brasil
As cidades da região metropolitana de Vitória estão sob os pés de Mestre Álvaro, uma das maiores elevações litorâneas da costa brasileira, localizada no município de Serra. Contam que o nome é uma homenagem a um carpinteiro que morava por ali. Quando alguém precisava de seus serviços, dizia que ia ao Morro do Mestre Álvaro. Se é verdade ou só uma das histórias, não importa. A montanha com 833 metros de altura domina e embeleza ainda mais a paisagem, imóvel em sua grandiosidade.
A vida e a Lei de Chico Prego
Chico Prego é um personagem nada famoso no Brasil. Tão injusto quanto sua história. Chico era um escravo na Vila de Serra, lá no século 19. Em uma festa na inauguração de uma obra religiosa, os escravos festejavam. Havia a promessa de serem alforriados os que participaram na construção da obra. O fato desagradava os coronéis, que temiam uma rebelião e convenceram as autoridades a enviarem reforço policial. Os homens de farda chegaram pra acabar com a festa e a vida dos escravos. Chico, que vivia na freguesia de Queimado, foi à Vila de Serra convidar seus amigos pra festa. Pra sua infelicidade, Chico foi torturado e executado, para servir de exemplo aos outros, que se esconderam no Mestre Álvaro.
Em sua homenagem, Serra batizou uma Lei de Incentivo Cultural com seu nome, o Projeto Cultural Chico Prego (Lei 2204/99), que oferece recursos para artistas viabilizarem suas obras.
V de vai deixar saudades
Vitória é uma cidade bem planejada, com uma orla bem cuidada, avenidas largas, clima quente, várias opções de lazer, diversos picos espalhados por ela e pelas cidades vizinhas. Difícil entender porque é tão pouco divulgada e conhecida. O lado bom é ser uma capital com cara de cidade pequena.
Cheguei na cidade para ficar hospedado no hostel Onça da Praia, em troca de fotografias. Fiquei quase duas semanas, fui pra Belo Horizonte de trem, voltei e fiquei mais uma. Na hora de ir embora, de novo a pior e a melhor parte da viagem juntas, em um paradoxo de enlouquecer: a sensação de solidão ao chegar a algum lugar sem ter um rosto conhecido é a mesma ao partir deixando vários amigos pra trás.
É tanta gente boa de espírito que nem santo explica.