Audax 300 Km: Qual o limite da resistência humana?
Pela trigésima vez, Roberto percebeu a queda da corrente. Queria urrar de raiva, bater o pé, jogar a bicicleta longe, mas tudo isso exigia esforço. E força é o que mais lhe faltava naquele momento.
Audax é uma modalidade de ciclismo de longa distância focada na resistência e na superação. Não busca a competição, mas a regularidade. O relato a seguir registra uma experiência vivida durante uma prova de Audax no Brasil – o Brevet 300, realizado em 21 de março de 2015 pelo Clube Audax Randonneurs de São Paulo. Os Brevets são realizados em diversos países e homologados pelo Audax Club Parisien (ACP), a entidade máxima da modalidade.
Arquivo pessoal/Roberto Petri
O desafio Audax 300 Km
Naquele dia, era necessário percorrer 300 km entre no mínimo 10 e no máximo 20 horas. Para garantir a regularidade, existiam cinco Pontos de Controle, os chamados PCs. Nesses pontos era necessário carimbar um passaporte,dentro dos horários mínimos e máximos estabelecidos. No último, homologava-se a conclusão da prova. Partindo de Holambra, o percurso passava por Mogi-Guaçu, Espírito Santo do Pinhal, Águas da Prata, Poços de Caldas, Casa Branca e Estiva Gerbi, retornando finalmente a Holambra.
Pela trigésima vez, Roberto percebeu a queda da corrente. Queria urrar de raiva, bater o pé, jogar a bicicleta longe, mas tudo isso exigia esforço. E força é o que mais lhe faltava naquele momento.
Resignou-se e, de forma quase automática, desceu da bicicleta. Abaixou-se lentamente e se posicionou. Olhou para a corrente e não gostou do que viu. Corrente, pedivela e cassete estavam cobertos de areia. A água da chuva, misturada com o suor e a sujeira, escorria incessantemente pelo seu rosto. Percebeu que, naquelas circunstâncias, alguma coisa iria falhar mais seriamente. Uma corrente rompida, um câmbio quebrado, marchas travadas, ou até mesmo uma pequena queda decretariam o fim de sua jornada.
Procurou isolar tal pensamento, assim como neutralizou a dor que sentia nas pernas, costas, braços e ombros. Recolocou a corrente e rapidamente partiu. Aquele ato já virara rotina. Empurrar o pedal também. Seria possível calcular o número de pedaladas das últimas dezessete horas? Melhor nem pensar!
A boca tinha um gosto estranho. A palma da mão doía muito. No último PC, preferiu não retirar as luvas. As mãos deviam estar em carne viva! Embora não fosse uma noite de inverno, a chuva intensa dos últimos cem quilômetros já causava uma ligeira hipotermia. Foi a sua parada mais rápida. Em menos de quinze minutos, voltara para a estrada encarando novamente a escuridão, o frio e a chuva. Era isso, ou a desistência.
Tudo isso vinha à sua cabeça, mas rapidamente era substituído pela determinação. Não queria perder o foco no objetivo final. “Concentre-se!”, pensava consigo mesmo. E as pernas obedeciam, executando o movimento repetitivo e cadenciado. Giravam, giravam e giravam.
Mesmo com todas as dificuldades, tudo funcionava em perfeita harmonia. Ele percebia qualquer ondulação no asfalto, qualquer buraco. Avaliava a profundidade das poças d’água. Decidia com rapidez a melhor marcha a utilizar. Descia com cautela e subia com cadência e determinação. Ele e a bicicleta pareciam uma única maquina, trabalhando com precisão rumo a um objetivo comum.
Não era um superatleta, longe disso. Há três anos, próximo aos 140 kg, resolveu fazer alguma coisa para reverter a situação que colocava sua vida em risco. Começou então a pedalar. Vinte mil quilômetros percorridos, trinta quilos perdidos e centenas de aventuras vividas em cima de uma bike o haviam levado até ali. Naquela estrada sem fim, em uma noite de muita chuva e frio.
Levantou o rosto e viu a placa do trevo de acesso a Holambra. Não tinha noção de que estava tão perto. Mais de 90 km atrás o velocímetro havia parado. No começo, fazia as contas de cabeça, mas nas últimas horas até isso ficara de lado. Apenas as tarefas essenciais ocupavam seu cérebro agora.
Uma sensação de alívio percorreu todo o seu corpo. O relógio marcava exatamente meia-noite. Em poucos minutos estaria no PC5, recebendo o certificado e a medalha. Sua esposa, Silvana, estaria esperando para ampará-lo com roupas secas, medicamentos, alimento e o que mais fosse necessário. Finalmente sua jornada teria fim.
Não se apressou! Agora o cuidado era tudo. Ainda restavam três horas para o prazo máximo de vinte horas. Só dois quilômetros e estaria tudo acabado.
Enquanto suas pernas giravam o pedal, em ritmo lento e compassado, seu cérebro trabalhava intensamente. As imagens de tudo o que vivenciara naquele dia passavam pela sua cabeça, como se fossem lembranças de toda uma vida.
Lembrou-se do som das aves de rapina, na subida da serra de Poços de Caldas, entre o PC1 e o PC2. Lembrou-se da despedida da esposa e dos amigos que fizeram o desafio 135, no PC1. Lembrou-se do reflexo do farol dos carros. Do desânimo ao ver seu pneu furado após 195km. Da alegria em rever a esposa no PC3 em Casa Branca, e como ela o abraçou preocupada. Lembrou-se da dor nas pernas, ao pedalar de pé por mais de 3 km, na subida após sair de Poços de Caldas. Lembrou-se de vários rostos. Rostos sofridos, alegres, determinados.
Nessa altura, já deixara a estrada para trás. Pedalava em direção ao portal de Holambra. Agora suas pernas não respondiam mais. Era como se fossem duas bolas de ferro. Todo movimento requeria muito esforço.
Não saíam de sua cabeça os números. Trezentos quilômetros. Quatro mil e quinhentos metros de ganho de altitude. Dezessete horas pedalando. Cento e cinquenta ciclistas. Cento e oito quilos de peso. Quarenta e nove anos de idade.
Pela última vez, alongou o pescoço e os ombros. Esticou o braço e passou pelas costas. Levantou-se um pouco do selim e deixou o embalo levar a bicicleta por alguns metros. Como não estava tão veloz, logo teve que voltar a movimentar o pedal. Isso era cada vez mais difícil.
O portal de Holambra se aproximava. Dali, apenas quinhentos metros o separavam do fim. Um longo dia! Quatro horas da manhã já estava em pé. Quatro e trinta, colocando as bicicletas e bagagem no carro. Cinco horas, saindo de Jundiaí em direção a Holambra. Seis e quinze, passando pela vistoria. Sete e quinze, na estrada.
Passando pelo portal, entrou à direita. Restavam trezentos metros. Não percebeu o obstáculo e quase foi ao chão! A dor na virilha foi imediata. Um frio estranho e intenso tomou conta de suas entranhas. Como um simples descuido poderia acabar com tudo? Toda a preparação. Toda a expectativa. Toda a dedicação. Um grande sonho poderia ter fim naquele exato momento!
Apenas a determinação, que ele não imaginava ter, poderia levá-lo até a linha de chegada.
Como esperado, Silvana o aguardava! Não conseguiu entender suas palavras. Apenas o abraço quente e apertado. Fingiu limpar o rosto e enxugou as lágrimas que espontaneamente enchiam seus olhos. Estava em casa!
Recebeu a medalha e o certificado. Algumas fotos. Com as mãos trêmulas, quase não conseguiu assinar o passaporte. Colocou roupas secas, tomou um prato de sopa quente que lhe ofereceram. Trocou as últimas palavras com o pessoal de apoio e partiu.
Em uma hora estava em casa. Um banho quente, um lanche e cama. Nesse exato momento, completava vinte e quatro horas acordado.
Qual o limite da resistência humana? Qual o limite da dor, do sofrimento? Quantos quilômetros ou horas uma pessoa pode percorrer? A resposta a todas essas perguntas é a mesma, e muito simples: não há limite!
A verdadeira pergunta não é essa, mas sim: você está preparado?
O limite está na cabeça de cada um. Está em quanto você está disposto a se doar por um objetivo. É por isso que dizem que o Audax é uma prova que depende muito mais da mente que do corpo. É claro que ninguém percorre 200, 300, 400 km sem uma condição física adequada. Mas, se não estiver disposto a permanecer sobre uma bicicleta por horas, não estiver disposto a enfrentar todas as adversidades, o frio, o calor, a chuva, falhas mecânicas e dezenas de outros imprevistos inesperados, será quase impossível terminar.
Paciência e disciplina são tão importantes quanto a condição física. Determinação vale mais do que o equipamento. Planejamento é melhor do que a força.
É preciso ter plena consciência do que você é capaz e do que está disposto a fazer. E saber também a hora de parar, por que não?
Essas são as grandes lições deixadas pelo Audax. Lições que jamais devem ser esquecidas. Vencidos os 300, agora serão 400. Quando? No exato momento em que estiver preparado para isso. Não é hoje. Pode ser daqui a alguns meses, ou anos. Isso também não importa. Tudo a seu tempo!