Aos motoristas de boa vontade
Aceleramos, os carros 1.5 e 2.0, roncamos o motor e paramos segundos depois atrás das luzes em brasa, na traseira de outro veículo potente, que andou pouco mais de 20km/h.
O trânsito e a mobilidade urbana tal qual a circulação no corpo físico, dos astros e o funcionamento da vida de um modo geral possuem cadência, ritmo e equilibrio, as batidas do coração ditam o ritmo de cada indivíduo de uma maneira única e quando nos damos conta disso passamos a respeitar o próprio ritmo, sem ansiedades frebicitantes, sem atropelos, aprendemos a respirar.
Tão curioso, assim também a cidade formada por cada tijolo, cada pedacinho de calçada, grafite, anúncios, asfalto, praças, ruas, casas, prédios, igualmente formada pelo verde, pelas folhas, flores, pássaros, pelo céu, pelas nuvens, assim também pelo trânsito com suas veias e artérias, a cidade pulsa, porque é formada por seres humanos. E cada cidade tem um rosto e uma forma de se vestir diferentes, mas isso não lhes diminui a beleza só demonstra a riqueza da diversidade.
Arte de Reynaldo Berto
Mantenha a distância, por Reynaldo Berto
Imersos, seguindo o fluxo da cidade de dentro dos vidros com o ar condicionado ou não, nós os motoristas não escutamos o coração da cidade com os vidros e os ouvidos fechados pelo medo, o medo de ser assaltado – mas se ja perdemos a paz o que mais poderiamos perder – o medo de olhar no retrovisor e ter o cuidado de avisar que irá passar com o sinal luminoso ligado, a seta do veículo é uma gentileza tal qual um “com licença preciso passar por favor”. No entanto, tão fora de ritmo nos encontramos que nos confinamos dentro dos veículos e vivemos o “fantástico” mundo de dentro dos carros e esquecemos dos demais, os ônibus ficam enfurecidos porque tomamos o lugar deles nas faixas exclusivas, então eles passam a se impor pela força, os caminhões tal qual os seus irmãos ônibus fazem o mesmo.
No trânsito acontece algo interessante com o nosso olhar de motorista, passamos a encarar a cara dos veículos, olhar para as latarias ao invés de olharmos para os olhos do ser humano que dirige e comanda aquele instrumento de deslocamento. De dentro dos carros baixamos o nosso olhar, surdos aos apelos da nossa mãe cidade, aos avisos e diminuimos também a atenção, afinal nós estamos revestidos com uma armadura de segurança e tudo parece monocromático, fumê.
Então, de repente, “não mais que de repente” alguém passa por nós e nos mostra qual o real ritmo da vida, nos traz de volta a consciência, a esperança, o cuidado e a fragilidade de nós mesmos, ao encarar o retrovisor, lá vem ele o ciclista, luzes piscando, capacete, ele vem no ritmo dele, tão discreto, tão simples, ocupando tão pouco asfalto, sem barulho, sem agredir a ninguém, seus sinais são o olhar, as roupas alegres e os gestos indicativos.
Entretanto, tão alienados nós motoristas, das leis de trânsito e também da realidade da vida, olhamos vemos o ciclitas e realizamos: “ah…é o ciclista…”, quando não “esses ciclistas só atrapalham o trânsito” e seguimos sem nos darmos conta, vemos sem ver – quanta falta de gentileza – nos tornamos cavaleiros medievais no trânsito da cidade e não enxergamos de dentro de nossas armaduras os civis. Mas, os civis só passam e ocupam tão pouco espaço! Nós também somos civis!
Após sair do mergulho em meus pensamentos como motorista em um trânsito intenso e me deparar com as injustiças no trânsito perpetrada contra os mais frágeis, como ainda não tinha a coragem de homens e mulheres que decidiam ir a pé ou de bike, de dentro do carro, tirei as lentes monocromáticas.
Passei a abrir mais o vidro e pedir desculpa ao outro motorista quando errava e assim acalmar o amigo nervoso, passei a proteger o ciclista sempre que possível, proteger aquele que nos ensina a ser simples e mais humanos.
Dessa forma, comecei a diminuir a velocidade e cuidar de sua passagem com a distância adequada, emparelhar para proteger dos ônibus, pois era melhor eu estar com o carro sendo empurrada ou fechada pelo ônibus do que o ciclista, foi assim que passei a admirar os movimentos pró-vida e pró bike, foi assim que passei a abrir o vidro do carro e comemorar com pessoal da bicicletada buzinando junto com as bicicletas e cumprimentanto os ciclistas que comemoraram e vi com alegria eles passando e ocupando uma faixa inteira – eles que geralmente ocupam tão pouco espaço na cidade sejam no estacionameto, nas garagens ou nas ruas – porque sei que a cidade precisa de todos é lei de trânsito e dever de cidadão.
Aos motoristas de boa vontade pensem nisso, passem essa idéia adiante, somos todos irmãos e necessitamos uns dos outros para termos melhores condições e mais paz em nossas ruas e avenidas, para você que gosta do cheiro de novo de seu carro, que comprou com sacríficio o seu veículo vamos dar passagem a gentileza entre nós todos. Somos células que circulam e fazem pulsar o coração da cidade, vamos respeitar mais aqueles que nos ensinam com gestos simples e pedaladas a encontrar equilíbrio e olhar nos olhos.
Tassiane Nunes Garcia, 26 anos, bacharel em Direito.