Pinarello lança bike com campanha machista e ciclistas rechaçam a marca
Mais um caso de machismo no mundo do ciclismo escancara o quanto o esporte ainda precisa evoluir para ter equidade de gênero e mais mulheres pedalando.
Novembro de 2017. A essa altura do campeonato, a marca italiana e artesanal de bicicletas, Pinarello, pisou errado no pedal. Se por um lado a montadora desenvolveu uma bicicleta elétrica speedeira com apenas 13 quilos – ou seja, uma bike com grande potencial -, por outro ela investiu em uma propagando para lá de machista.
Em sua página oficial no Instagram, a foto de uma jovem moça acompanha a seguinte legenda: “Eu sempre quis pedalar com o meu namorado, mas isso parecia impossível. Em breve, tudo será possível”
Em seu release oficial, destinado aos veículos de comunicação que quisessem divulgar a nova bike, lê-se: “A Nytro tem um amplo público alvo, como quem não tem nenhum tempo para treinar, mas nunca perderá um pedal de fim de semana com amigos, MULHERES que gostariam de seguir o ritmo dos homens, ou mesmo aqueles que desejam experimentar o ciclismo com descidas seguras, aproveitando cada minuto na bicicleta”.
É bom lembrar que em nenhum momento foi negado o fato de que existe o perfil da mulher que deseja uma bicicleta elétrica, bem como homens. Inclusive, todos os perfis de mulheres que pedalam devem ser atendidos, da mesma maneira que a indústria faz com o público masculino.
Mas embasar uma peça publicitária em um único público feminino, e mais que isso, em um estereótipo de feminilidade, não dá mais para tolerar. Se pararmos para analisar a bike em questão, seja ela elétrico ou não, trata-se de um desenho agressivo; é uma estradeira. Nenhum ciclistas inexperiente vai conseguir pilotar a Nytro. Isso posto, fica ainda mais evidente o quão apelativo foi a forma como a empresa quis atingir o público feminino.
Como é uma bicicleta elétrica, a Nytro tem que seguir a regulamentação da União Europeia e sua assistência só ajuda até aos 25 km/h. Daí para frente, é só você e suas pernas – levando em conta os 13 quilos da Nytro, frente a média de 9 Kg das bikes não elétricas. Somado a isso, pelotões de ciclismo chegam facilmente a 30 km/hora, muitas vezes passando dos 40 e até 50km/h. Sendo assim, se o uso da Nytro fosse realmente para ajudar uma mulher a acompanhar seu marido nos treinos, ela certamente continuaria para trás.
Isso quer dizer que a Nytro não tem uso? Não, só quer dizer que a Pinarello perdeu a chance de usar outras personas mais interessantes, como quem curte subir as grandes montanhas com seus incríveis 400 watts de potência ou até mesmo usá-la como uma bicicleta urbana super rápida, sem precisar suar.
A maneira como as mulheres são vistas no ciclismo, e principalmente representadas em anúncios pensados por homens, escancara preconceitos em diferentes esferas da sociedade. Desde peças publicitárias que usam mulheres seminuas para promover uma bicicleta para o público masculino – seguindo a lógica carrocrata dos salões de automóveis – até o vício em limitar as especificações de uma bike feminina na cor rosa e nos detalhes de florzinha.
Em 2017, não há sentido algum em questionar a performance feminina. Basta olhar para os números do World Tour e ver que em muitas categorias as mulheres possuem índices muito similares aos masculinos. Ser atleta mulher não é nada fácil, porque diferente dos homens, que possuem dedicação exclusiva e todo tipo de suporte, boa parte das atletas mulheres de alto rendimento ainda precisam manter outros empregos por ganharem muito menos que seus colegas homens.
O mesmo se repete em provas randonneurs e de longa distâncias. Aliás, quando se trata de longa distância, as mulheres têm se saído melhores que os homens, como foi o caso da Lael Wilcox, que venceu todos os oponentes – mulheres e homens – na extenuante Trans America Bike Race em 2016.
Outro exemplo é Alfonsina Strada, a única mulher a competir o Giro D`Italia, ainda em 1924. Para correr a prova, Alfonsina deixou de lado seu orgulho e a última letra “A” do seu nome. A estratégia funcionou só no papel, pois no dia anterior à largada sua história já era coberta pela imprensa e ovacionada pelo público.
Na primeira etapa ela terminou em 74º, uma hora atrás do líder, mas isso não era nada pois nesta época os atletas terminavam as provas com horas de diferença entre o primeiro e o último. Nas etapas seguintes ela continuou terminando à frente de muitos homens. Tudo corria bem até a 8ª etapa, quando uma queda acabou quebrando sua bicicleta. Ela terminou a etapa mesmo improvisando um conserto com um cabo de vassoura no lugar do guidão e com ferimentos pelo corpo. Os juízes da prova, já envergonhados pelo engano de aceitar a participação de uma mulher que ganhava de muitos homens, decidiram expulsá-la da prova alegando que havia chegado fora do tempo limite.
Mas a sorte estava ao lado de Alfonsina, que pretendia continuar competindo mas não tinha como pagar pela manutenção e alojamentos. Foi então que Emilio Colombo, o diretor da Gazzetta Dello Sport e o principal organizador da prova, percebeu o filão publicitário que poderia ganhar com Alfonsina e se ofereceu para bancar os gastos. Colombo enfrentou o clima machista da época (que não mudou muito até hoje) e a transformou numa celebridade. Assim, Alfonsina continou pedalando no Giro mas fora das premiações e classificação geral.
Alfonsina completou as 12 etapas e 3.613km do Giro D’Italia de 1924. Como reconhecimento por seu esforço e valentia, Alfonsina recebeu 50.000 liras como premiação. Depois de 1924 Alfonsina tentou competir novamente no Giro, mas a organização não permitiu mais.
O Giro D’Italia só ganhou uma versão feminina em 1988, 64 anos depois do grande feito de Alfonsina. A prova é conhecida hoje como Giro Rosa e é disputada em 10 etapas com pouco mais – ou menos, a depender do ano – de mil quilômetros percorridos. Bem menos do que as 12 etapas e 3.613km do Giro D’Italia de 1924, e menos ainda que as 21 etapas atuais, que variam os quilômetros ano a ano, sempre na média dos 3.600.
Voltando ao caso Pinarello. Após a péssima repercussão de sua propaganda – desde comentários críticos, até atletas homens fazendo postagens ironizando a peça publicitária -, a marca apagou a postagem e se desculpou em suas redes sociais. Contudo, o caso fica registrado como mais um machismo no mundo do ciclismo, que ainda precisa “pensar mulher” para não apenas atingir, mas representar as mulheres que suam a camisa para crescer o esporte e tornar esse universo mais inclusivo.
E não são apenas as grandes empresas de bicicleta que precisam mudar o seu comportamento frente à luta pela equidade de gênero no ciclismo e no mundo. Esse tal namorado – são muitos; amigos, treinadores, mecânicos e homens em geral – que reclama da performance de sua companheira, deveria incentivar essa parceira de pedal, apoiando e a ajudando a evoluir no esporte sem dizeres preconceituosos que só afastam potenciais ciclistas do mundo da bike.
Seja no esporte, mobilidade ou lazer, mulheres pedalando são por si só um ato de resistência frente a um mundo de desigualdades. Não são limitações físicas que impedem de mais mulheres pedalarem, são limitações sociais que se apresentam como grandes ladeiras no percurso. Mas, estamos vencendo elas metro a metro!