“Tomei um chá de cadeira (de lycra e sapatilha), mas meu atropelamento não passou em branco”
Um relato pessoal da experiência de ser atropelado e ter a força de vontade necessária para realizar o processo burocrático e não deixar passar em branco um crime de trânsito.
Há uma semana me envolvi em um acidente de trânsito às 9h33 da manhã de um sábado normal. Voltando da USP, cruzando a ciclovia da Av. Pedroso de Moraes, fui atingido por um sujeito que fez uma conversão proibida, furou o sinal e cruzou uma das alças da ciclovia, avançando contra minha vida e de quem estava comigo.
Ainda deitado no chão, depois de perceber que eu estava vivo e aparentemente inteiro, eu vi o motorista arrancando o carro e pensei na hora: “O filho da mãe ainda vai fugir!”. Não, ele não fugiu. Atravessou a avenida, estacionou de qualquer jeito e desceu do carro para me “socorrer”. Para meu espanto e de todos que presenciaram o acidente, o que saiu do carro foi uma criatura deplorável, a embriaguez mal lhe dava condições de se firmar de pé. Falando mole e tentando normalizar a situação (afinal eu estava vivo!), o cara ainda teve o cuidado de apoiar a cerveja semi-aberta no teto do carro antes de vir ao meu encontro.
De acordo com os dados do próprio Infosiga, site do governo de São Paulo que concentra estatísticas de óbitos no trânsito, o número de acidentes fatais envolvendo ciclistas na capital cresceu 75% nos primeiros 6 meses de 2017. Talvez não seja coincidência que esse primeiro semestre também tenha sido palco da campanha #acelerasaopaulo do gestor João Doria, que para bel prazer dos motores, revogou medidas ligadas diretamente à redução de mortes de ciclistas e pedestres no trânsito da capital, iniciadas em 2005.
No momento do acidente, embora tudo tenha acontecido muito rápido, ainda tive o reflexo de me virar para o mesmo sentido do carro o que talvez tenha dado mais tempo de reação ao motorista assassino e as consequência dessa infeliz trombada foram minimizados. Tanto eu quanto a bicicleta tivemos ferimentos leves, mas no momento minha revolta era enorme. Senti o peso das mortes e vítimas em situações parecidas: a morte do Claudio Clarindo, o David que teve o braço decepado, o senhor Álvaro Teno atropelado na USP também numa manhã de sábado. Todos homicídios dolosos (com intenção de matar) uma vez que o motorista assumiu o risco ao dirigir sem condições físicas e psicológicas para tal. Casos em que nossa justiça frouxa e carrocrata, colocou panos quentes e os autores responderam em liberdade, pagaram fiança ou saíram impunes.
Com a endorfina do treino somada à adrenalina do acidente, o sangue ferveu e minha primeira reação foi trucidar o maluco. Segurei o cara e pedi que alguém chamasse a polícia imediatamente. As testemunhas tentaram me acalmar pedindo que eu o soltasse. Com as chaves do carro no bolso da jersey, eu sabia que ele não podia mais fugir.
Embora pareçam uma infeliz casualidade, “acidentes” acontecem devido a uma sucessão de erros. NENHUM deles era mais relevante que a completa embriaguez desse homicida em potencial. Por muita sorte ou intervenção divina eu não entrei para a versão atualizada da estatística de óbitos da capital, mas espero no entanto ter entrado para outra: a de crimes de trânsito que foram registrados.
Esse texto tem um caráter informativo para todos os ciclistas e pedestres vulneráveis à insegurança do trânsito. Espero que ninguém passe por nada parecido, mas se um dia algo acontecer, façam todo o procedimento burocrático de registro do acidente. Boletim de ocorrência, exame de corpo de delito, exija o teste do bafômetro ou exame clínico para o motorista e não se assuste com a máquina pública; ela é lenta e burrocrática, mas esse processo é extremamente importante para que tenhamos provas e mais ferramentas para negociar melhores condições de segurança.
Seria muito mais fácil ter feito um acordo com o motorista antes da polícia chegar, principalmente porque minha integridade física foi levemente abalada, e o motorista (embora “zêbado”) parecia ser uma pessoa decente em dias normais. Isso é o que a maioria das pessoas fazem, por preguiça, má fé ou descrença no poder público, mas a consequência da versão “deixa disso” é devastadora. Se o poder público não possui números para averiguação, é como se nada tivesse acontecido e toda briga por segurança é descredibilizada pela má fé dos órgãos fiscalizadores.
Eu tomei um chá de cadeira (de lycra e sapatilha) e gastei quase 5h na delegacia para ter tudo documentado, com laudo médico, barba, cabelo e bigode. A questão não era a de pegar o cara pra cristo ou fazer uma vingancinha pessoal, mas a de registrar uma ocorrência gravíssima que não podia passar sem gerar conseqüências maiores para o criminoso.
Estamos cada vez mais desprotegidos, isso é um fato, mesmo aqueles que utilizam a mínima malha cicloviária, que claramente favorece as áreas centrais da cidade. Agora pense nas periferias, locais com mais ciclistas e menos condições seguras para se locomoverem. É onde se concentram mais mortes e a repercussão é mínima.
É muito importante considerar que uma cidade que tem como slogan ‘Acelera São Paulo’, discute a remoção de infra estruturas para os ciclistas, diminui as iniciativas para melhoria do transporte público, diminui a fiscalização e tem um prefeito que ainda comemora a diminuição da aplicação de multas, vibra no sentido oposto ao da segurança no trânsito e do cumprimento da legislação. Pra piorar, os ciclistas estão sendo excluídos do processo de revisão do Plano Cicloviário da capital paulista, posto em prática pela prefeitura.
Se este é o cenário, cabe a nós usar o próprio sistema a nosso favor. Faça valer o seu direito e haja em caso de agressão, desrespeito ou acidente com outros veículos nas ruas, registre reclamações, faça o boletim de ocorrência e denuncie. Procure orientação para seguir os procedimentos oficiais em cada situação. Em 2010, o ciclista Marcelo Mig iniciou uma pesquisa na internet chamada “Sustos, buzinadas e acidentes”, com o intuito de mapear onde e como acontecem os conflitos entre bicicletas e demais veículos. Se você foi vítima em alguma situação, registre seu relato!
“Eu tô firmão, Eis-me aqui, Você não, Cê não passa, Quando o mar vermelho abrir.”, já dizia Mano Brown