Longas distâncias: a dor é inevitável, mas o sofrimento não
Quem está acostumado a fazer longas distâncias de bicicleta já conhece de cor as ene coisas que começam a incomodar pouco a pouco o pedal.
O texto a seguir foi escrito em parceria com o blog das Pedaleirax, um espaço onde o movimento de mulheres ciclistas de Florianópolis-SC registra e compartilha suas produções.
Fui acordada antes das seis da manhã com aquela sensação “onde estou?”. A mente se conectou rápido e lembrei que amanhecia em Florianópolis-SC, que eu estava no sul do país para participar do evento 100gurias100medo, e que naquela sexta-feira pedalaríamos 100 Km em mais de 100 gurias. A adrenalina me tirou da cama e em menos de uma hora estávamos todas na concentração de um pedal de longa distância que deu a volta nessa ilha-cidade que enche os olhos de belezas e o coração de paz.

100km100Medo com As Pedaleirax de Floripa/ © Giuliana Pompeu
Foram os meus primeiros 100 quilômetros seguidos em cima de uma bicicleta (90 Km na verdade, pois em um trecho subi na camionete de apoio para fazer umas imagens do pelotão só de mulheres — algo realmente impressionante!). Quem está acostumado a fazer longas distâncias de bicicleta já conhece de cor as ene coisas que começam a incomodar pouco a pouco o pedal.
Depois dos primeiros 50 Km, eu já sentia minha virilha sendo cortada a cada giro dos pedais, meu pé começou a doer um pouco com o tênis inapropriado para tanto asfalto percorrido, até minhas mãos dentro das luvas pareciam calejar com o contato com as manoplas. Mas, em meio a todas essas dores-distrações tinha a estrada, o infinito caminho de possibilidade, e a cada metro, a cada vento que batia no rosto eu lembrava dessa frase budista: a dor é inevitável, mas o sofrimento uma opção. Eu diria até que uma escolha.
O Sol se punha e era lindo demais ver as sobras de tantas ciclistas contra um céu azul-lilás. A cada parada, a união entre as gurias se punha a prova e era preciso confiar umas nas outras para seguir o pedal que a essa altura enfrentava a rodovia 401, conhecida como estrada da morte por ser o local com maior número de atropelamento de ciclistas. O que eu quero dizer é que todas essas questões podem ser um prato cheio para o gatilho do sofrimento, do “eu não aguento mais”, “quero minha casa e minha mãe”. E não é que não doa, que não dê desespero, mas o que fazemos com os fatos, as verdades que criamos a partir deles é sempre nossa escolha.
Me lembro de um pedal de mountain bike que a Falzoni levou a equipe do Bike é Legal; Deus como eu sofri. No meio da trilha eu só queria me teletransportar para fora daquela floresta que como nunca antes parecia demasiadamente hostil. Na ocasião, eu não consegui terminar pedalando o desafio. Com a bike sob o controle apenas dos braços que a empurravam eu terminei sofrendo a dor de não conseguir.
Sim, fato é que dessa vez em terminei, eu pedalei a centena de quilômetros impulsionada pela energia de dezenas de mulheres guerreiras que construíram esse evento lindo, mas mais do que coletiva, a escolha por sentir as dores de um desafio como esse sem se entregar ao sofrimento e as lamentações foi minha, e teria sido mesmo que eu não o completasse.
Foi dentro da minha mente que os monstros que pedalam rápido conseguiram me alcançar e tentar os pensamentos fracos. Não foi fácil encontrar na cadência do pedalar a paz do giro, a consciência de que assim como o movimento dos pedais, a vida segue cíclica e ciclística, segue sempre no ciclo do embaixo-em cima, no ciclo da vida-morte-vida. Se viver causa dor, a morte leva o sofrimento, e em paz voltamos mais uma vez a vida.
O Bike é Legal produziu uma videorreportagem sobre o evento, confira abaixo: