Cicloturismo: “Se você não é grato, como pode haver graça?”
Com o objetivo de dar a volta ao mundo de bike, Israel Coifman já pedalou mais de 6.000 Km e traz aqui as lições que aprender cruzando a Bolívia.
“Independente do que acontecer para você, você deve ter algum nível de contentamento e com o contentamento vem a gratidão. Se você está descontente, como você pode ser grato? Se você está resmungando, você não pode ser grato, e se você não é grato, como pode haver graça?” Sri Sri Ravi Shankar.
A frase do Guruji motivou a história a seguir.

Potosí, Bolivia/ © Israel Coifman
Estava animado para sair de Uyuni e então “entrar na Bolívia” de fato. O Salar é fenomenal, mas é inóspito e turístico e eu queria mesmo era sentir esse país que me cerca de curiosidades. Eram mais de 200km montanhosos até Potosí, a primeira cidade grande, e no caminho uma série de vilarejos para conhecer.
Em Uyuni descansei, lavei roupa, pesquisei um pouco sobre o caminho e contraí uma gripe e problemas estomacais…caganeira mesmo. Achei que estava melhor, queria logo partir e me mandei. Era sábado cedo e a temperatura pela manhã era de -2 no alto dos 3600m aos pés do Salar.

Salar De Uyuni, Bolivia/ © Israel Coifman
Comecei em ritmo lento, ciente que o caminho seria duro. Saí sem saber onde iria parar (essa é uma das melhores coisas da viagem), mas preparado com mantimentos para levantar acampamento quando o cansaço batesse.
Definitivamente, estar com o nariz entupido e ter dificuldades respiratórias não é uma boa combinação com pedalar nas alturas. Adicione aí dor de barriga em uma estrada íngreme. Pedalei 15km no sufoco naquela subida. Faltava ar. Faltava força. Em seis meses de viagem, foi a primeira vez que empurrei a bicicleta. Não aguentava nem isso. Parei. Descansei, comi e tomei agua. Sentei pra meia dúzia de pedaladas e desci outra vez. Encostei a Perica na mureta e deitei no acostamento. Repeti a sequência por mais algumas vezes e joguei a toalha. Não tinha força nas pernas, nem ar suficiente pra mais nada. Estava fraco. E também pela primeira vez me sentia debilitado. Procurei lugar pra acampar, mas só haviam pedras e precipícios. Virei para estrada e vinha um caminhão. Fiz sinal e ele parou. Román me ajudou a subir a bike na carreta e me levou até o próximo pueblo: Pulacaya. Curiosamente eu estava quase lá, foram menos de 5km de carona.
Tratava-se de um pueblo de 200 pessoas, bem humilde. Mas onde tem gente humilde tem coração grande. Fui cambaleando até o Posto de Saúde e fui atendido pela Maribel. Pressão baixa e desidratação somadas ao resfriado e a altitude, que ali ja era mais de 4000 metros. Disse a ela que eu precisava de um lugar pra ficar e ela fez umas ligações pra pedir autorização para me alojar em um dormitório de uma antiga mina. Maribel me deu medicamentos e me ajudou a empurrar a bicicleta até aquele galpão. Comi e dormi até o dia seguinte.
Acordei melhor e segui viagem. Este dia foi o oposto do anterior. Quase 60km entre ladeiras e planícies, um alívio pro corpo e pra mente. Cheguei a Tica-Tica e novamente fui parar no hospital, mas desta vez por outro motivo.

Parada para o almoço. Bolívia/ © Israel Coifman
Procurava lugar pra acampar protegido do forte vento que assoprava por ali. Era domingo e encontrei um hospital fechado. Havia um cartaz colado na porta de vidro indicando o telefone do médico, para caso de emergência. Anexo ao prédio havia uma casa e fui ver se havia alguém ali. A porta estava destrancada e quando entrei me deparei com um lugar perfeito para passar a noite. Era um salão onde estavam mobiliando um refeitório. Havia mesa, pia, banheiro com ducha quente, energia e amplo espaço para por meu colchão e guardar a bicicleta. Não havia a quem pedir autorização e não pensei duas vezes. Cozinhei e esparramei as minhas coisas por ali. Vitória!.
Mais ou menos uma hora depois vi pessoas chegando e não sabia o que fazer. Me escondi! Que situação! Imagina ser flagrado como invasor de propriedade pública? Imaginei várias coisas. Imaginei a polícia chegar. Imaginei ser deportado na Bolívia! Quanta imaginação! Mas já pensou? Que fim!.
De volta à realidade resolvi fazer o certo sob o risco de perder o mais que perfeito refúgio. Entrei no hospital e encontrei o enfermeiro Seledônio. Expliquei a situação, da onde vinha, o que fazia e disse que quando cheguei não havia ninguém ali, mas achei melhor pedir autorização já que apareceram pessoas. E ele, que não manda nada por ali, me autorizou. A honestidade e a verdade são sempre os melhores caminhos. Voltei aliviado pra dentro e feliz por ter feito a coisa certa.
A noite cozinhei a janta: arroz com legumes e lentilha. Vi que Seledônio estava de partida e fui agradecê-lo outra vez. Aproveitei para convida-lo para o jantar como se fosse na minha própria casa. O homem estava com fome e adorou a comida. Batemos um longo papo e ali se foi mais um abraço daqueles que nos enchem de alegria.
Dia seguinte sai pra um dia com carimbo de cicloturismo. Paisagens exuberantes, cânions, zonas arqueológicas, estrada de filme de aventura, subidas e descidas e uma natureza que se revelava a cada curva. Um casal parou o carro e me deu mexericas de presente. Vários motoristas me cumprimentavam e eu viajava num alto astral delicioso. Me sentia 100% fisicamente também. Cheguei a Chaquilla e achei uma pensão baratinha.
Galeria de fotos: 6.000 Km pedalados e o ‘planeta de sal’
Um costume local nas altas montanhas da região da Cordilheira dos Andes é mascar folha de coca para ajudar com os efeitos da altitude. O caldo que que se mistura com a saliva faz com que o oxigênio seja absorvido mais facilmente pela corrente sanguínea, mas ele também tira seu sono. E essa noite não preguei os olhos.
O último e mais difícil de dia de viagem antes de Potosí estava comprometido. Acordei cansado e novamente gripado. As dores de barriga também não haviam voltado. Não estava mal como no primeiro dia e desta vez não fui abalado pela altura, mas o corpo e a cabeça estavam pesados. Das receitas mais básicas para um dia de sucesso são dormir e comer bem e eu havia falhado nessa missão. Estava irritado, cansado e fraco outra vez.
Se houvesse um mínimo de conforto na pensão, eu ficaria um dia a mais por lá. Mas além de não haver, tinha uma lhama recém abatida no pátio e suas patas estavam espalhadas pelo jardim. Nada agradável. Não deu vontade de ficar por lá não!.
Pedalei 40 de subida. Faltavam 30. O mal estar só aumentava e, em uma curva a quase 4500m de altura encontrei o Jerome, um cicloviajante suíço indo pra Uyuni. Ele estava com problemas no seu freio e parei para ajudá-lo. Minutos depois encostou um caminhão.
Óscar desceu para perguntar se estava tudo bem e se precisávamos de algo. Ele disse que estava indo a Potosí. Aí veio aquele momento, aquela eternidade de pensamento “Vou ou não vou com ele?”.
Desta vez não sofri. Eu tive dias incríveis desde Uyuni, mas também difíceis. Brigando com o corpo, com a resistência e com a altitude. Cheguei a 4500m pedalando no sacrifício e entendi que Óscar tinha uma função em minha vida. Ele não parou ali por acaso. Subi sem culpa e com gratidão.
Até porque se não formos gratos, qual a graça?