Cicloturismo: Os quilômetros ensinam, a estrada te transforma
Colocar a bicicleta na estrada com a pretensão de com ela dar a volta ao mundo não é um sonho fácil. Cada quilômetro apresenta um novo desafio, que superado se torna um grande aprendizado.
Cada escolha é uma renúncia. Em algum momento da vida já nos deparamos com essa frase. Nem sempre as consequências dos caminhos que escolhemos aparecem rapidamente. Na estrada é lindo ver os rumos tomando outros rumos por conta de pequenos gestos. Parar para tomar um café, ler umas páginas de um livro ou descansar uns minutos na estrada faz com que eu deixe de cruzar com algumas pessoas, sentir alguma mudança no clima ou ver coisas. E claro, me coloca em contato com uma outra realidade.
Me lamentei por vários dias seguidos por dores que comecei a sentir no joelho esquerdo. Não escutei meu coração, não escutei meu corpo. Me chateei por estar chateado, por não saber lidar com um possível desvio de rumo para descansar, me recuperar ou até me tratar se fosse necessário. Logo eu, que assumi há um tempo que não queria ter controles. Nem sobre a viagem, nem sobre nada. Parei para descansar e passei a ouvir melhor as vibrações do meu corpo, o que ele pedia e parece que comecei a encontrar uma cadência entre físico, espírito e mente. Passei a aceitar melhor a dor e a vê-la com outros olhos.
Por causa deste incômodo – que mais me preocupava do que doía – parei em lugares que eu não poderia imaginar. Num povoado chamado Cañada de Gomez, me hospedei na casa do Andrés Fluxa, um cara que está há quatro anos na estrada e atualmente pedala pelo Japão. Ele me convidou para ficar com seus pais, para que eles pudessem ter um pouco de contato com gente como ele, que viaja em bicicleta. Me senti honrado e impressionado com o convite. Comentei sobre as dores e ele, desde Fuji, me apresentou o Diego Velásquez, um amigo mecânico e dono de bicicletaria. Diego trouxe o seu pai, Pedro, para ver a minha bicicleta e fazer umas adaptações para ver se as dores diminuiriam. Pedro, com seus 70 e poucos anos, se emocionou ao relembrar suas primeiras viagens de bicicleta cruzando a Argentina rumo ao Chile. Se viu em mim e me emocionou também. Diego fez uma revisão completa e inclusive trocou a minha corrente. Não me deixou pagar nem um centavo. Disse que ajudar alguém que está viajando o mundo de bicicleta não tem preço pra ele.
Os pais de Andrés me receberam como um filho. Marta, sua mãe me deu um remédio para dor. Cozinhou comida vegetariana e me fez dar risadas junto com seu marido, o Miguel, um figura cheio de energia e histórias para contar. Ele me levou para uma caminhada e para conhecer a cidade. Me deu uma aula sobre café e mate. Me despedi com um aperto e alegria no coração! Eles me fizeram muito bem! Ao partir, Diego me acompanhou por cerca de 30km na estrada, me deu um abraço com os olhos cheios de lágrimas. Logo os meus também se inundaram e me despedi desse amigo que fiz dois dias antes. Quem viaja de bicicleta sabe que se emocionar é recorrente, seja sozinho com nossos pensamentos ou através de pessoas como Diego, Pedro, Marta, Miguel e o Andrés Fluxa, que nem conheci.
O Diego, antes de me dar esse abraço de irmão e me deixar chorando por alguns quilômetros, me apresentou virtualmente pessoas que me hospedariam nos próximos dias pelo caminho. Ele também pediu para eu escrever um livro ao fim da minha jornada para que ele pudesse ler para seu filho, que está na barriga de sua esposa. Como não se emocionar?
Depois de ter passado pelas casas de seus amigos, parei num povoado de 2 mil pessoas para comprar uma cartela do comprimido que a Marta tinha me dado. As dores estavam melhores, mas eu ainda pensava muito nelas. Entrei na farmácia e logo depois entrou o Richard, um tipo curioso que não acreditava que eu pedalava desde o Brasil. Poucos minutos de conversa ele me convidou para almoçar com sua família. Antes de aceitar, a moça da farmácia me deu de presente o remédio que eu queria comprar. Almocei com a família do Richard e ele me deu ótimas dicas das serras que eu queria visitar. Antes de ir embora ele ainda me levou a um canal de televisão para dar uma entrevista. Foi muito divertido! Mais uma vez eu me despedia com um calor no coração! Cheguei ao meu destino e, ao perguntar sobre locais para acampar, fui convidado para passar a noite num hotel com ar condicionado (fazia tempo que não sabia o que era isso!) Que dia!
A essa altura as dores já eram bem menores pois por dentro eu estava bem aquecido. Passei a me preocupar menos e escutar melhor os meus sinais. Decidi então que faria uma pausa mais longa. Fiz contato via Couchsurfing com o Andrés Borghi para uns dias de estadia. A minha energia estava tão alta, tão forte que eu não poderia cair em um lugar mais perfeito. Fiquei quase dez dias com sua família, uma família linda que vive num ritmo diferente do que eu conhecia. Ele e suas duas irmãs são artistas e apaixonados por viajar. Seu pai é professor de informática e sua mãe professora de Tai Chi Chuan. Os dias por lá, na cidade de Rio Tercero, me fizeram muito bem. A calma em que eles vivem me trouxe então para o meu ritmo, para um ritmo que me deixa confortável e que tem a ver comigo e com o que estou fazendo. Pedalo agora mais devagar, menos quilômetros, sinto menos dores e contemplo mais. Descansei muito na casa do Andrés e aprendi com todos. É interessante e intrigante ver como podemos viver de várias maneiras e chegar ao mesmo lugar.
Deixei Rio Tercero viajando num ritmo diferente dos outros sessenta dias que já tinham ficado para trás. Foi como enfim puxar minha cabeça para cada batida do coração, para cada inspirada, expirada e suspirada e para cada sopro de vento gelado que encontrava minha pele. Cheguei a Villa Rumipal sem saber onde passaria a noite. As paradas que fiz para ler, descansar, comer e conversar com desconhecidos me colocaram num instante exato para ter a Julieta, em uma bicicleta, cruzando o meu caminho.
Eu estava num gramado lindo próximo a um lago também muito bonito. Um lugar calmo, limpo, aparentemente seguro, com um belo entardecer e perfeito para acampar. Perguntei a ela se ali de fato era uma área tranquila e depois de conversar um pouco ela me convidou para armar a barraca no jardim de sua casa. Disse que antes teria que perguntar para sua mãe e avó. Mais tarde estávamos todos reunidos e elas me levaram para conhecer uma outra cidade. Conversamos muito como se já nos conhecêssemos. No fim das contas nem precisei montar acampamento pois havia um quarto disponível e dormi confortavelmente numa cama. No dia seguinte ainda fiz o almoço. Me senti em casa! Sua vó tem 90 anos e é cheia de energia! Me fez sentir muita saudade da minha, que tem a mesma idade. Tive o melhor e mais surpreendente final de semana desde o início da viagem. Não há como explicar em palavras, talvez nem com sorrisos e olhares o que tenho vivido e como tenho sido presenteado com dias que parecem tão impossíveis, mas que são de verdade como o coração da Julieta.
Parti para o trecho mais difícil até então: subir a serra da Calamuchita e chegar em La Cumbrecita, ponto mais alto da província de Córdoba. As dores? Cada vez menores. Foram as subidas mais pesadas da viagem e talvez de toda a minha vida. Curti cada giro no pedal, cada carro que me cumprimentava buzinando ou com um aceno. Não imaginava que a paisagem seria tão exuberante. Uma cadeia de montanhas daquelas bem diferentes das que temos no Brasil. Um sol forte e um vento gelado. Parei para comer o jantar do dia anterior, que estava quentinho graças a uma marmita térmica que trago comigo. Sentar numa sombra a beira da estrada, cheio de fome e me deliciar com aquela comida simples foi melhor que sentar à mesa de qualquer restaurante que eu já visitei antes.
Por um instante passou um filme rápido na minha cabeça e senti uma enrome gratidão por sentir as dores que senti. Sem elas não teria conhecidos as pessoas que conheci, sequer estaria no alto daquela montanha pois foi graças aos encontros inesperados do caminho que descobri essa região. Passei a julgar menos, a me julgar menos e aceitar mais. As coisas são como elas são e é a nossa mente que nos conduz para todos os lugares. Há beleza inclusive quando ela é traiçoeira conosco. É tudo uma questão de como você quer encarar. Com um sorriso é sempre bem mais leve!
Obrigado Argentina! Ainda tenho um longo caminho antes de te deixar para trás e prometo seguir te tratando bem, assim como tens feito comigo!