Diário das Magrelas: Cidade perigosa, cultura do medo e resistência
E da mesma forma que o vento toca descomplicado toda a extensão da pele exposta, o mundo cruza, esbarra e derruba. Experienciar a vida assim tão de perto também assusta
A bicicleta humaniza a cidade. Quanto mais pessoas começam a usar a bicicleta como meio de transporte, mais a cultura carrocrata se dissolve. Ocupar as ruas com diferentes modais, em especial com modais ativos, transforma esses não lugares do espaço público. Acumula significado porque significa para mais gente; passa a ter função para as pessoas de fora do carro. Ciclovias, corredores de ônibus e baixas velocidades são medidas que ressignificam uma parte do não tão primário sistema viário; priorizam o coletivo sobre o individual.

”Passe por cima dos problemas. Pedalando!”, mensagem do cartunista Reynaldo Berto / © Reynaldo Berto
Andar a pé ou de bicicleta nos permite ver o céu. Em questão de segundos entramos em um lugar. Enxergamos pessoas antes de vidros, reflexos ou pontos cegos da lataria. E da mesma forma que o vento toca descomplicado toda a extensão da pele exposta, o mundo cruza, esbarra e derruba. Experienciar a vida assim tão de perto também assusta.
Na imensidão da cidade, as realidades se distinguem e as possibilidades se destingem. A segurança que eu almejo para chegar em casa é quase a mesma que muitos buscam para sair dali. Mas entre o ser ou não ser, existe o estar. Permanecer, continuar e resistir. E apesar dos pesares, pedalar!
Alguns dizem que é culpa da crise. Outros dizem ser consequência do aumento de ciclistas nas ruas. Há também os que falam que a impunidade está grande demais. Cada qual com sua parcela de veracidade, continuam todos parecendo ainda distantes do ponto central. E mesmo depois de um assalto, de uma bike recuperada, de uma lesão e de muitas pedaladas tensas e atentas, tenho perguntas de sobra. Quase nenhuma resposta.
Fazendo jus ao título do texto, tenho três verdades: a cidade de São Paulo é perigosa. Existe uma cultura do medo que nos deixa em pânico. Pedalar e resistir é preciso.
…conhecer nossos limites também!
Tenho ideais de cidade e essas ideias em si são importantes para construir algo melhor. Mas da mesma forma que a utopia me faz construir o futuro, a realidade me faz sobreviver no presente. Eu não pedalo de madrugada, evito algumas rotas e lugares, olho para trás e para os lados com a mesma cadência que giro meus pedais. Faço tudo isso com desgosto, comparando a realidade com o ideal.
Certa vez uma boa amiga me disse: “Temos que trabalhar com a realidade!”. Desde então eu não só trabalho com ela, como eu vivo com ela. Durmo com ela e por vezes até sonho com ela. Nela eu resisto, nela eu pedalo.