Festival Bike Arte: A ‘Cracolândia’ em um dia de festa
Com receio ou não, pessoas de todos os cantos da cidade foram ao Bairro da Luz participar do festival, que nesse ano assumiu o sobrenome Cracolândia
Sou moradora do centro de São Paulo há mais de 18 anos. Cresci a poucos quarteirões da Favela do Moinho e a menos de dois quilômetros da polêmica Cracolândia. Mas apesar da proximidade geográfica, minha realidade social sempre me levou para bem longe desses lugares e das pessoas que vivem e sobrevivem neles.

Festival Bike Arte – Cracolândia / © Ivson Miranda
A verdade é que o Bike Arte desse ano foi a única situação que me fez parar nessa que é uma das regiões tidas como mais perigosas da capital paulista. “Muita gente criticou a escolha do lugar e deixou de vir por medo da região. Mas acreditamos que é preciso ocupar esses lugares, colocar arte e bicicleta frente a essas situações. Esse exercicio diminui distâncias físicas e sociais”, conta Murilo Casagrande, um dos organizadores do evento pelo Instituto Aromeiazero.
Com receio ou não, pessoas de todos os cantos da cidade foram ao bairro da Luz participar do festival, que nesse ano assumiu o sobrenome Cracolândia. O evento reuniu uma série de atividades, que iam desde a tradicional Oficina Comunitária – que rola todo fim de mês na região -, até roda de desenho e ginástica com bambu.
Foi na roda de desenho que conheci Kauan, um garotinho de sete anos que tem um par de olhos profundos e uma perseverança que vi em poucas crianças. Ele já não aguentava mais rabiscar uma pequena parte do mural que foi doado a um dos carroceiros da região, quando descobriu que poderia montar uma pipa. Quem avisou foi sua própria mãe, o encorajando a ir buscar o papagaio. Mesmo assim, ele insistiu que terminaria a parte dele no desenho e só então iria brincar de outra coisa.

Festival Bike Arte – Cracolândia / © Ivson Miranda
Na mesma roda de desenho havia outras crianças, duas irmãs, uma garotinha que não parecia viver ali –mas vivia- e uma garota que não devia ter mais anos de vida do que eu. No meio da atividade, a mãe das irmãs apareceu carinhosa e entregou a uma das filhas um pacote com dois pães franceses e uma banana. Se queixando de fome, a adolescente ganhou da mão da criança meio pão e da boca da colega de rua uma bronca por ter pedido um pedaço do almoço das meninas.
Entre tantas atividades organizadas para as crianças carentes, havia uma barraquinha que só podia desfrutar quem a realidade morava bem longe dali. Com coca-colas a cinco reais, só matava a sede quem nunca a sentiu de verdade.
Já na barraca das pipas, o Kauan me contou quanto custam os utensílios desses brinquedos na Favela do Moinho, onde vive com a mãe e mais dois irmãos e uma irmã. Ele tentou me ensinar a empinar pipa, enquanto eu tentei falar sobre os malefícios dele querer colocar cerol na linha.

Festival Bike Arte – Cracolândia / © Ivson Miranda
Eu fiquei realmente admirada na maneira como ele me deu atenção, como não me ignorou como a maioria das crianças faz com quem acabou de conhecer. As crianças que estavam alí não foram criadas como eu, com atenção 24 horas e choros sempre atendidos. Uma disposição para brincar ainda parece ser muito mais interessante que um celular.
Dentre várias assuntos que conversei com o Kauan, um deles foi sobre bicicleta e a relação que ele mantinha com a pequena bike prateada que ele consertara feliz na Oficina Comunitária. “Eu gosto muito de andar de bicicleta. Essa é a minha segunda bike. A primeira roubaram de mim e ai minha mãe arranjou essa.”, contou o garoto sempre atento a bike.
Na mesma praça que hoje ocupa o cruzamento das Ruas Cleveland e Helvétia, crianças pedalavam e brincavam, adultos de classe média conversavam e tomavam suas coca-colas e sim, uma quantidade considerável de usuários de crack faziam a festa em um sábado diferente na Cracolândia. Por uma tarde, o êxtase da droga deu lugar a diversão pela música, pela arte e pela bicicleta.