Opinião: Os carrocratas de bicicleta
Entrar na lógica de que rua é lugar de carro, ciclovia de bicicleta e calçada de pedestre, é legitimar a lógica de que a segurança de um indivíduo depende apenas dele
“Gente, o nome já diz Ciclovia, lugar de bicicleta, Rodovia, lugar de carro e caminhão.
…mas cada um que se cuide…não vai durar muito isso até começar os acidentes.
A Sumaré esta impossível pedalar nos fins de semanas, virou passarela pra desfile de cachorros, carrinhos de bebê e madames passeando…Ciclovia é para bike, quer correr vai no parque, na calçada, na rua.
…Menos né…ciclovia é para bicicletas.
…você não anda na ciclovia 500 metros sem se deparar com um pedestre atrapalhando o fluxo das bikes…
…Sinto muito mas as finas continuarão e vão piorar.“
Reynaldo Berto
Opinião: Os carrocratas de bicicleta
Essas frases são trechos retirados de comentários dos leitores do Bike é Legal, referentes à vídeorreportagem sobre ciclistas dividirem espaço com corredores nas ciclovias de São Paulo. O assunto é de fato muito delicado, envolve a conquista recente de espaços destinados a segurança de ciclistas na cidade, mas mais do que isso, envolve espaços não destinados aos carros.
Pedalar em ciclovias é com certeza mais seguro e tira dos motoristas de uma rua ou avenida, a necessidade do zelo pela vida de quem se locomove sobre duas rodas não motorizadas e que por isso estão mais expostos a possíveis acidentes. Mas mesmo que a cidade multiplique em muitas vezes seus quilômetros de ciclovias, a mobilidade por bicicleta ainda irá depender das ruas, nem que seja para fazer interligações entre as ciclovias, ou mesmo para se ter a opção por uma caminho mais curto.
Entrar na lógica de que rua é lugar de carro, ciclovia de bicicleta e calçada de pedestre, é legitimar a lógica de que a segurança de um indivíduo depende apenas dele, partindo do pressuposto de que ele deve estar restrito a um espaço destinado ao seu modal. E o problema dessa lógica é sua aplicação, pois ciclistas continuam a pedalar na rua e pedestres, em especial corredores, se sentem cada vez mais convidados a ocupar uma via menos congestionada e que oferece mais segurança para sua prática esportiva.
Os comentários feitos nessa e em outras matérias que se voltam para o compartilhamento das ciclovias, tem me deixado bastante incomodada, não pela crítica em si a esse compartilhamento, mas, em especial, pelo uso da lógica e de termos carrocratas, que responsabilizam sempre o outro pela sua própria segurança, evitando o incômodo de precisar desacelerar para proteger o bem estar físico de outro ser humano.
Compartilhar uma ciclovia com um corredor é tão chato quanto compartilhar a rua com um ciclista. É preciso empatia, é necessário sair da sua perspectiva para enxergar a do outro, não apenas por altruísmo, mas por pura segurança.
Como disse, ao meu ver, ciclovias não se tratam apenas de vias destinadas aos ciclistas, mas principalmente de vias destinadas a pessoas, fora de grandes máquinas motorizadas. O fenômeno do crescente número de corredores nas ciclovias, em especial na Avenida Paulista, é o reflexo de uma carência de espaços livres e protegidos dos carros. Engana-se quem pensa que correr nas calçadas da Paulista em um horário de pico, quando as pessoas estão saindo de seus trabalhos, é algo fácil. Um dos motivos da Ciclovia da Paulista ser usada para a prática de esportes é o fato de o único parque da região, o Trianon MASP, fechar seus portões antes da badalada das seis horas da tarde.
Não existe punição para o uso das ciclovias por pessoas fora de bicicletas e não será sua fina educativa que fará com que elas parem de usar a mesma. A única coisa que você pode ganhar com uma fina educativa em um corredor é o peso de assustar ou até machucar um ser humano, além do título de um grande sem noção. E se vamos falar de noção, vale dizer que possuir essa coisa tão preciosa é o princípio da solução de todos os litígios. Mesmo que um tanto abstrata, uma boa noção acalma a alma e zela pela vida do próximo.
Desacelere seu ritmo e pare para pensar que amanhã pode ser você a ser julgado por estar fora do seu devido lugar. Afinal, qual é o seu lugar?
E para quem ainda não assistiu à vídeorreportagem de Renata Falzoni e Murilo Azevedo, confira abaixo: