A Ciclovia da Paulista e o resgate de uma cidade para pessoas
Ela chegou as poucos, primeiro escondida atrás de tapumes e protegida por uma via inativada para obras e depois se despindo desses mesmos tapumes, redesenhando a avenida mais emblemática de São Paulo
Eram 55 minutos para chegar ao trabalho todas as manhãs. Eu era uma iniciante no pedal urbano e as faixas vermelhas me conectavam da Barra Funda ao Parque do Ibirapuera por vias que cortam o centro velho da cidade de São Paulo. Pegar a Avenida Paulista de bicicleta era uma tarefa noturna, que só fazia quando pedalava pela última vez no dia, saindo da faculdade e voltando para casa.
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A Ciclovia da Paulista e o resgate de uma cidade para pessoas
Ela chegou as poucos, primeiro escondida atrás de grandes tapumes e protegida por uma via inativada para obras e depois se despindo desses mesmos tapumes, redesenhando a avenida mais emblemática da cidade de São Paulo. A Ciclovia da Paulista representa uma luta antiga, mas antes da primeira camada de tinta vermelha, foi sangue o que pintou a avenida.
Pedalava só durante a noite na Avenida Paulista, porque o compartilhamento das vias durante o dia é bem mais complicado. Por muitas vezes, o ciclista ocupa a faixa de ônibus para se deslocar com mais segurança. Em 2009, quando a ciclista Márcia Prado foi atropelada por um motorista de ônibus na avenida, não havia faixa preferencial -nem para ônibus, tão pouco para bicicleta- e a disputa por espaço era ainda mais difícil.
Márcia Prado foi a primeira de três mortes que ainda deixam marcas na avenida. As Ghost Bikes, bicicletas inteiramente pintadas de branco que lembram a morte de ciclistas atropelados, estão até hoje presas pela Paulista.
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Ghost Bike de Márcia Prado está presa em um canteiro em frente ao Shopping Cidade São Paulo
Na altura do novo Shopping Cidade São Paulo, a bicicleta branca de Márcia Prado resiste e assiste mais de 2.000 ciclistas –segundo dados da Ciclocidade– pedalarem pelo antigo canteiro central. Vale salientar que a Avenida Paulista sempre foi uma rota ciclística por se tratar de uma rápida via de conexão, onde -ainda segundo números da Ciclocidade- quase mil ciclistas pedalavam em meio aos veículos motorizados.
Também próximo a Rua Pamplona, outra bicicleta branca descansa ao lado da estação Trianon Masp. Juliana Dias foi atropelada em 2012, também por um motorista de ônibus. Antes da última morte de um ciclista na avenida, um atropelamento chocou a capital paulista e mudou radicalmente a vida de David Santos.
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A Ghost Bike de Juliana Dias está presa em uma grade ao lado da estação Trianon Masp
O ciclista que nos dias de hoje prova diariamente sua superação, ainda pedalando como meio de transporte, teve seu braço decepado por um motorista embriagado quando pedalava pela Ciclofaixa de Lazer que estava sendo desenhada por cones. Alex Siwek deixou o passageiro do automóvel em casa, jogou o braço de David em um córrego e só então se entregou a polícia. Enquanto isso, o ciclista era socorrido por testemunhas e levado ao hospital.
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David Santos pedalando na Ciclovia da Paulista
No último festival de eletrônica que fui, Siwek estava lá.
Novembro de 2014, em uma tarde de entregas, o biker mensageiro Marlon Moreira perdeu sua vida no cruzamento da Avenida Brigadeiro Luís Antônio com a Paulista. Mais uma vez, por um motorista de ônibus.
Cicloativismo
Em 2002 chegou ao Brasil o Movimento Massa Crítica. Popularizado como Bicicletada, a última sexta-feira do mês passou a reunir milhares de ciclistas ocupando a Paulista. O movimento que também se responsabilizava pelas Ghost Bikes, foi essencial para a pressão por uma ciclovia na avenida. Grandes agentes do cicloativismo atual se formaram na Bicicletada, e a articulação dos mesmo fez surgir associações como a Ciclocidade (Associação dos Ciclistas de São Paulo) e o CicloBR, além de impulsionar uma série de micro ações relacionadas a mobilidade por bicicleta.
Também resultado da luta dos ciclista paulistanos, a Praça do Ciclista foi oficializada por lei em outubro de 2007. A pequena horta comunitária é ponto de encontro cativo dos ciclistas, de lá saem pedaladas, manifestações e sonhos.
A grande batalha
Foi ali, no cruzamento da Avenida Paulista com a Rua da Consolação, na histórica Praça do Ciclista, que mais de sete mil pessoas se reuniram para protestar contra uma liminar do Ministério Público de São Paulo.
A gestão do Prefeito Fernando Haddad se elegeu prometendo 400 Km de ciclovias. Mas ao longo desses três anos, as obras das mesmas foi motivo de muita polêmica. Mas nada superou a Liminar de Segurança embasada em uma reportagem da Veja (já desmentida pela prefeitura), pedindo a paralisação de todas as obras cicloviárias não concluídas na cidade de São Paulo.
Em Primeira Instância, a Promotora Camila Mansour teve seu pedido atendido com exceção para a Ciclovia da Paulista, a qual o Juiz acreditou que a paralisação das obras seria um transtorno ainda maior. Ainda assim, foi a Avenida Paulista o palco da vitória do protesto contra essa decisão.
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O protesto reuniu mais de 7 mil pessoas na Avenida Paulista
Ainda na primeira metade da avenida, quando milhares de ciclistas, pedestres, skatistas e patinadores ocupavam as vias há pouco mais de duas horas, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo derrubou a liminar e levantou o grito de emoção na Paulista. Era a certeza de que as obras iriam continuar.
A Avenida Paulista sempre foi para pessoas
A Ciclovia da Paulista, quando inaugurada, trouxe de volta a avenida um ar que há alguns anos não cruzava os enormes prédios comerciais da região. Inaugurada em 1891, a Avenida Paulista foi até 1952 tida como Zona Estritamente Residencial. No lugar dos prédios, existiam enormes casarões e a avenida em si possuía apenas três faixas: uma para bondes puxados por animais, outra para carruagens e cavaleiros e uma terceira para pedestres.
O projeto original previa inclusive uma avenida subterrânea, na qual muito provavelmente seria feita uma longa galeria. A ideia foi abandonada, mas ainda existe parcialmente o espaço disponível.
Anos depois, em 1936, uma alteração no zoneamento permitiu a construção de prédios e, em poucos anos, a Paulista se transformou em centro comercial da cidade. A essa altura, a avenida já contava com duas pistas de rolamento de cada lado. A calçada preta e branca, forrada de pedregulhos portugueses, era seis metros mais larga (de cada lado) e em seu passeio, os pedestres conviviam com árvores e com mais de 120 frondosos ipês.
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A calçada da Avenida Paulista contava com seis metros a mais de cada lado
Foi na década de 70, no auge da ditadura militar, que a gestão paulistana do Prefeito Faria Lima projetou a “Nova Paulista”. O novo desenho previa a retirada de mais de dez metros de calçada e a extinção dos Ipês. O projeto classificava esses elementos como interferência.
Ainda assim, diferentemente de outras Avenidas como a Consolação, Sumaré, Rio Branco e Rebouças, que também foram alargadas, a Avenida Paulista manteve suas características mais humanas. Afinal, são mais de um milhão e meio de pedestres que cruzam a avenida todos os dias, desembarcando dos mais diversos modais que a Paulista oferece.
Paulista aberta para as pessoas
Inaugurada oficialmente no dia 28 de junho de 2015, a Ciclovia da Avenida Paulista marcou o início de uma nova era. Além de redesenhar meu percurso matinal, que agora dura apenas 30 minutos, a estrutura segregada (o que caracteriza uma ciclovia) cruza olhares curiosos. O ciclistas passam felizes, enquanto os motoristas parados observam essa liberdade sobre duas rodas.
Sinto todos os dias, ao pedalar pela ciclovia, brotar nesses olhares novas possibilidades. A pedaladas desritmadas, São Paulo e sua população traz de volta a Avenida Paulista o convívio entre pessoas.
Desde a inauguração da Ciclofaixa de Lazer, a decisão da prefeitura de fechar a avenida para os carros e abri-la para as pessoas todos os domingos, a avenida mais paulista da cidade continua sendo o cartão postal da capital. Mas agora de uma nova São Paulo, que se redescobre a partir de uma reinvenção da cidade para pessoas.