CicloAmérica: Gazu, o pai que ganhei na minha cicloviagem
Gazu estava radiante. Parecia uma criança que leva um novo amigo pela primeira vez à sua casa. Ao contrário de Nalva, sua véia. A ideia de ter um estranho em sua casa não lhe agradava.
Mãe e Pai,
Precisamos conversar.
Antes de tudo, como vocês estão? Tudo bem por aí?
Desculpem a falta de educação, que vocês me deram tão bem. É a ansiedade falando alto.

Gazu e sua magrela / © Rodrigo Cisman
Por aqui, tá tudo certinho! Muitos lugares bonitos, o sol sempre convidando pra aproveitar o dia lá fora, seja pra pedalar, entrar no mar, ficar deitado na areia. Também chove bastante, assim os dias não ficam tão quentes, assenta a poeira, diminui a maresia.
Antes que perguntem, a saúde tá ótima. As pedaladas são um exercício completo, e tô me alimentando bem. Muita fruta, água, peixe, arroz, feijão, farinha. Às vezes uma cervejinha pra fechar o dia, dormir feliz e relaxado.
Bom, vamos ao que interessa. Preciso contar uma coisa a vocês.
Sabem como é, andando por aí (pedalando no meu caso, mas sejamos práticos), conheço muita gente. A maioria de boa índole, fiquem tranquilos. Sei bem com quem me meto. O caso não é esse.
Aconteceu que estava em Itacaré, uma cidade muito bonita e turística da Bahia. De lá, resolvi cruzar de barco para a Península de Maraú. Quem me levou foi o Neo, um canoeiro nativo, bom conversador, inteligente, muito receptivo. Colocamos a bicicleta na canoa e em dez minutos atravessamos o Rio de Contas.
Desci na península e comecei a pedalar. A estrada é de areia e terra, o que dificulta um pouco o avanço. Com tanta tranquilidade, árvores margeando a estradinha e o barulho do mar, o que menos tinha era pressa.
E ali estava eu, pedalando e pensando na vida, quando ouvi um barulho atrás de mim. Virei pra trás e vi que era um cara em uma bicicleta, daquelas barra-forte, com uma sacolinha amarrada no bagageiro. Nos cumprimentamos e fomos lado a lado, conversando. Seu nome, ou como é conhecido, é Gazu.
Como de praxe, me perguntou pra onde estava indo. Respondi que tinha um lugar pra ficar na praia de Taipu de Fora, mais ao norte da península. Uns 40 quilômetros de onde estávamos, pelo que falavam.
Ele, com a simpatia e a simplicidade dos baianos, me convidou pra passar um dia em sua casa, conhecer a sua véia, como ele a chama. Educadamente, disse que podia voltar outro dia, depois que me alojasse lá na frente, onde já havia um lugar pra ficar. Ele insistiu. Eu assenti. E lá fomos nós dois. Ele na frente, mais apressado, eu atrás, tentando acompanhá-lo.
– Gostei de você. Não tem sacanagem, não sou homem errado. Vi que você não é um vagabundo que viaja por aí só com uma sacolinha, você tá viajando sério.
No meio do caminho, passamos por uma poça grande, meu chinelo soltou do pé e por lá ficou. Sem conseguir apoiar a bicicleta em lugar nenhum, ele voltou pra me ajudar. Foi quando perguntei se ele queria trocar de bike. Eu na dele, ele na minha. Com um sorriso disfarçado no rosto, ele aceitou. Disse que não sabia mexer no câmbio, então deixei na marcha do meio. Ele montou na bicicleta, deu cinco pedaladas cambaleantes, o pneu dianteiro afundou na areia fofa e não teve jeito. Lá foi ele pro chão! Tomou um capote bonito de se ver. Primeiro, fiquei preocupado que ele tivesse se machucado, mas levantou numa boa. Depois, lembrei do notebook dentro do alforge. Dois dias depois vi que também estava inteiro.
Os dez quilômetros até sua casa foram demorados. Cada conhecido no caminho era uma parada. Até que, finalmente, chegamos em uma casinha de madeira, onde alguns filhos compartilham o espaço com a tranquilidade. Os olhares direcionados a mim e à Zoé eram um misto de curiosidade e desconfiança.
De lá, descemos pelo meio do terreno até chegar a uma estradinha de areia. Aí, não teve jeito. Caxambu, um dos filhos que me encarava com uma certa distância, me ajudou a empurrar a bicicleta.
Gazu estava radiante. Parecia uma criança que leva um novo amigo pela primeira vez à sua casa. Ao contrário de Nalva, sua véia. A ideia de ter um estranho em sua casa não lhe agradava, o que não a impedia de me tratar bem.
– Seu Minino, ocê vai ficar aqui até quando?
A casa onde eles moram é de alvenaria, bem simples. Não tem descarga nem chuveiro. A cozinha fica fora, com fogão à lenha e sem geladeira. Além dos dois, alguns cachorros e gatos vivem ali. Pra não invadir ainda mais o espaço deles e ter minha privacidade, resolvi dormir entre umas árvores a 50 metros da casa.
– Você vai armar a barraca lá do lado porque quer, né?
À noite, Gazu vinha me visitar pra tomar uns goles de conhaque.
– A véia não gosta que eu bebo. Fumar pode, beber não. Ela não pode nem pensar que to bebendo. Eu num bebo, eu tomo!
E virava mais um gole da garrafa, menino levado que faz peraltice longe da mãe. Acendíamos um tabaco e ficávamos lá, conversando.
No dia seguinte, Gazu me convidou pra ir de bike até a casa de um conhecido, resolver uns problemas. Tirei tudo da bike e fomos. Conheci uns lugares da Península que turista nenhum tem acesso. No caminho, parávamos comer cacau, colhidos diretamente do pé. O sol castigava os dois, pedalando por trilhas de terra e areia. Paramos muitas vezes no caminho pra descansar.
– Quando venho com meus filhos, nenhum consegue me acompanhar. Você foi o único cabra que me deixou pra trás.
Gazu havia dito à Nalva que voltaríamos ao meio-dia. Eram quase quatro da tarde quando chegamos. Nalva estava na estrada com um facão na mão. A cara de poucos amigos era pior que um tapa. Gazu ria, fazia brincadeiras, como que pra amenizar o clima ruim. Ele ia andando na frente, Nalva e eu quase lado a lado.
– Seu Minino, amanhã é dia docê ir embora, né?
Foi depois disso que aconteceu o ocorrido. Sentados na varanda depois do almoço, com os ânimos já calmos, estávamos os três conversando.
– Você tem família?
– Tenho, sim.
– Tem pai?
– Tenho.
– Tem mãe?
– Tenho também.
– Então agora tem dois!
Não lembro o que respondi. Nem sei se falei alguma coisa. Essa frase de Gazu me encheu de alegria e esperança, me fez sentir em casa em um lugar que não sabia que existia até o dia anterior. Ao mesmo tempo, me levou pra longe, como se me teletransportasse pra Socorro, ao lado de vocês, do Lê, da Ná, da Su.
No dia seguinte era a hora da despedida.
– Vai embora porque quer, né?
Não sei se por coincidência, Nalva estava de bom humor.
– Seu Minino, ocê pode voltar quando quisé, a casa tá aberta.
Já Gazu me deu um abraço rápido, meio desinteressado. Não entendia muito bem o que estava acontecendo. Sentei na bicicleta, me virei pra trás pra dar o último tchau e vi que ele estava apoiado no parapeito de madeira da varanda enxugando as lágrimas que escorriam do seu rosto.
Comecei a pedalar de volta pela estrada de terra, meio cambaleante. Algumas coisas que acontecem parecem não fazer muito sentido. Depois de pedalar sozinho por um tempo atravessando a península, consegui organizar os pensamentos.
Meu pai, minha mãe, meus irmãos: arrumem a varanda, preparem a pracinha, que saudade nenhuma aperta mais que um abraço bem dado.