Mais um Dia Mundial sem Carro vem aí…e com ele mais 5.440 carros nas ruas do Brasil
Boa parte das cidades do Brasil têm experimentado, cada dia mais, o cerceamento do direito de ir e vir das pessoas pelos espaços públicos. Isso, em âmbito municipal e regional, advém, dentre outros fatores, da falta de planejamento territorial, do sucateamento e privatização dos transporte coletivos e da incapacidade dos gestores públicos criar sistemas integrados de mobilidade com prioridade aos transportes à propulsão humana e coletivos. Em esfera federal, dos incentivos do governo para aquisição de veículos automotores individuais que colocaram, de junho a julho de 2015, 163.226 novos carros (automóveis, para os legalistas) nas ruas do Brasil, segundo dados do Denatran. Isso equivale a 5.441 carros por dia Brasil afora. O país tem 5.561 municípios. É quase um carro novo por dia por município.
Um recorte geográfico: atualmente, BH conta com uma média de 2,39 habitantes para cada automóvel. Se a soma for de todos os veículos motorizados, esse número caí para 1,66 habitantes por veículo. Por mais que esses números nos levem a crer que a quantidade de carros é responsável por levar muita gente e que eles são maioria nas ruas, isso não é verdade. O trânsito, o caos e as infindáveis horas do rush nos dão a falsa sensação de que a maioria de nós se locomove de carro. No entanto, os automóveis individuais ocupam, claro, a maior parte do espaço público e, em contrapartida, levam uma quantidade muito menor de pessoas do que o transporte coletivo e os à propulsão humana (deslocamento a pé + bicicleta).
Esse contexto sombrio da (i)mobilidade urbana perpassa os problemas gerados nas ruas. As principais causas de morte entre os jovens europeus dos 15 aos 24 anos são: 1) acidentes de carro, 2) suicídio e 3) câncer. Uma análise, mesmo que superficial, consegue identificar essas três causas de morte como consequências de uma sociedade capitalista de consumo, na qual a busca pela saciação material é infinita e, na incapacidade de achar o que se procura, dar-se fim à vida. É a sociedade do consumo consumindo a própria vida humana. No Brasil, são mais de 50 mil mortes/ano em acidentes de carro e o principal fator que mata no país são as doenças cerebrovasculares.
O carro, símbolo máximo dessa sociedade individualista burguesa, é uma espécie de materialização da procura pela autonomia e independência individual perante o coletivo. Através do uso de (muuuita) energia cada vez que usa-se o carro, o indivíduo sente-se potencialmente capaz de se deslocar no tempo e no espaço, o que gera a expectativa do carro ser um instrumento capaz de alterar a realidade de quem o guia. Compreendido como o controle remoto da própria vida, esse dispositivo dá a impressão de ordem e de liberdade. Todavia, essa impressão de estar no controle é exatamente o que submete as pessoas ao status quo, à ordem constituída e à não contestação e à revolução.
Uma vez que esse sistema nos aliena e nos faz crer que só há uma única saída, como escolher outro caminho?
Um ponto de ruptura foi atingido com as manifestações que iniciaram em Porto Alegre, ganharam fôlego em São Paulo, com o Movimento Passe Livre, e tomaram as ruas do país: o direito ao transporte coletivo eficaz e barato (ou, no limite, de graça — Tarifa Zero).
A exclusão social surge a partir do momento em que se cobra um valor específico para que pessoas gozem do seu direito de ir e vir pela cidade. Somente a parcela da população que detém aquele valor específico é que terá acesso direto ao transporte que, pelo óbvio, não é público, embora seja coletivo.
Nessa conjuntura, somente os que têm acesso à tração motora é que têm acesso ao ir e vir, ou seja, o que era para ser um direito passa a ser um privilégio de uma parcela específica da população. Com isso, o cidadão que não tiver esse privilégio, que lhe dá acesso à cidade, tornar-se-á prisioneiro de um universo autoalienante: trabalho, casa, televisão, cama, trabalho e assim o ciclo se (retro)ali[m]en[t]a.
O modelo de cidade baseado no sistema rodoviarista, ou seja, no fluxo de veículos motorizados, é incapaz de compreender a circulação de pessoas pelos espaços públicos e por exclui o indivíduo. As cidades são, comumente, espaços dados e com pouca capacidade de expansão de seus limites geográficos. Dessa feita, a luta pela oferta de outros meios de locomoção, seja o transporte de massa, os bondes rápidos, os BRTs ou os transportes à propulsão humana (não motorizados) passa, necessariamente, pela limitação e/ou proibição da circulação dos carros por pontos da cidade (ou por ela inteira). No limite, por menos carros circulando pelos espaços públicos. Ou seja, por um novo contrato social que envolve, indiscriminadamente, o rearranjo do ambiente urbano.
Em oposição a esse desenvolvimento urbano, baseado nas mecanização das vias, tem-se as cidades com planejamento orientado às pessoas, que oferecem condições seguras para que qualquer cidadão possa se deslocar por ela a pé, de bicicleta, de patins, skate…Essa oposição tem sido, nas últimas décadas, fortemente representada pela a bicicleta, uma ferramenta que outrora representou a ruptura com o modelo de produção e consumo instituídos pelo capital e alimentado pela grande imprensa [e publicitários bem pagos].
Todas as cidades do mundo têm fatores limitantes, sejam físicos ou sócio-culturais, para a utilização da bicicleta. Tampouco há uma tipologia de ciclista ideal. O cidadão que quiser utilizar a bicicleta como seu veículo terá de se adaptar às condições não variáveis de sua localidade e pode ajudar na construção de uma nova cidade mais próxima daquilo que ele anceia. Pelo direito à mobilidade urbana e à cidade, faça parte do (tod[O]) Dia Mundial Sem Carro!
ps: ao longo dos últimos anos, inúmeras têm sido as tentativas de diminuir o espírito e a importância do Dia Mundial sem Carro (22/9). Exemplos:a adoção de não mais um dia sem carro, mas de uma semana ou mês da mobilidade, o qual o carro também pode participar, é um processo que demonstra a luta da indústria de se incluir até onde mesmo é negada sua participação. Outros dirão: mas o “futuro é a intermodalidade”. A construção de um novo modelo de sociedade passa, necessariamente, pela promoção de algo, mas, além disso, é fator preponderante nesse mesmo processo a negação para a mudança de uma cultura. Digamos NÃO aos carro, seja um, dois ou 365 dias por ano. No centro, na periferia e nas inúmeras possibilidades existentes no interregno de ambos.
Outro exemplo claro de desmobilização é a mudança da organização das atividades para um outro dia que não O Dia Mundial sem Carro (22/9).
Como em todos os anos, o Dia Mundial sem Carro será 22 de setembro, uma terça-feira. Todo mundo, numa escala planetária, está convidado a se livrar do carro, caso o tenha (como posse ou acesso).