A Guerra ao Ciclismo: da tela da TV às folhas dos jornais
O que pode fazer um ciclista contra alguém em um carro? Se esta batalha chegar a produzir resultados, temos de um lado indivíduos vulneráveis e, de outro, duas toneladas de aço. Isso se chama massacre
Sabotagem e sujeira inútil, assim podemos definir a grande quantidade de tinta azul despejada na ciclovia da Avenida Paulista na madrugada do último domingo (28). É certo que o autor do fato desconhece o Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito e que a cor vermelha já era adotada pela CET nas gestões passadas, a cor mais comum em ciclovias ao redor do mundo.
Regis Vieira
Ciclista sênior de Amsterdam
Além disso, vários ciclistas relataram nas redes sociais problemas relacionados a tachinhas postas nas ciclovias para perfurar os pneus das bikes. Tais incidentes continuam a ser raros e sua ameaça física a ciclistas é pequena se comparada com o perigo dos veículos a motor; mas é previsível o quão perigoso podem ser se, por exemplo, um grupo de 20 pessoas estiver passando e algum pneu for perfurado inesperadamente. Bastava que um caísse, atrás se empilhariam corpos, seguidos de uma bola de neve formada com as magrelas.
Em reportagem recente, o The Guardian aponta que os incidentes locais de sabotagem estão ligados a uma construção narrativa da mídia britânica na qual os ciclistas são demonizados como infratores, vadios, anárquicos, vagabundos, entre outros desqualificados.Este jogo discursivo também se dá no Brasil na mídia impressa, na televisão, no rádio e, de forma mais virulenta, por meio das redes sociais e comentários a sites. Outro paradoxo é que, mesmo que diversas cidades em todo mundo estejam, finalmente, construindo vias segregadas, por estar provado que esta é a melhor maneira de prevenir acidentes, o tom do debate em torno do ciclismo tem sido mais venenoso do que nunca.
Primeiro, vieram críticas diárias (em especial do Jornal Hoje), sobre a precariedade da infraestrutura cicloviária recém-instalada – ou em fase de instalação – no Município. Tratava-se da crítica a uma obra inacabada, ignorando a longa trilha para se chegar a uma rede cicloviária de excelência, em meio a uma cidade em permanente (re)construção.
Pairavam, também, argumentos como “essas ciclovias são inúteis, não vejo ninguém usando”. Até mesmo o Parquet Estadual [1] (sic) alegou em sua petição inicial que “ainda hoje, o veículo [automóvel] é o modal de transporte que transporta o maior número de pessoas neste Município”, para justificar a não implantação da rede cicloviária.
Contudo, sabe-se que o espaço faz o homem e o homem faz o espaço; mas não, até que ponto a previsão de mudanças urbanísticas pode exercer controle sobre os acontecimentos futuros. No caso emblemático da ciclofaixa que passou para o outro lado da Praça Vilaboim até chegar à Rua Piauí, vê-se que “no urbanismo você planeja fazendo”, como disse o Presidente do Instituto Pólis, Renato Cymbalista, em evento realizado por Carta Capital em março deste ano.
Pesquisa realizada pela Rede Nossa São Paulo/IBOPEem 2014 apurou que o carro é a opção de apenas 20% das pessoas de São Paulo, enquanto a maior parcela dos habitantes desloca-se a pé ou por meio do transporte público.Levando em consideração o mesmo indicador, 70% da população classifica o trânsito da cidade como ruim ou péssimo. Aos hesitantes, que tal um passeio na hora do rush da linha-3 vermelha do metrô?
Mas, ciclistas não respeitam a lei de trânsito! Esta é outra crítica repetida pela mídia contra o ciclismo. Em fevereiro de 2015, na Folha de São Paulo, Luiz Felipe Pondé, em sua pomposo coluna, faz um longo discurso contra o ciclismo, descrevendo um ciclista que ergueu sua bike – “como se fosse uma Uzi” – como alguém que deva se identificar com “o líder do Boko Haram da Nigéria e suas meninas raptadas”. No mesmo mês, foi publicado um artigo pela Revista Veja, que com clareza solar distorcia os cálculos das obras cicloviárias paulistanas, levando à conclusão de que o plano cicloviário só serviria para desviar dinheiro, o que levou a Prefeitura de SP a desmentir a Veja, pois as ciclovias custaram 1/3 do valor divulgado pela revista. Em matéria de maio deste ano, o Estadão alardeou que a “morte de ciclistas em SP cresceu 34% em 2014″. Porém, tais dados foram descontextualizados, como apurou o site Outras Palavras, indicando que, de fato, as mortes de ciclistas não aumentaram, mas diminuíram, proporcionalmente, 10% na capital.
Orquestram-se, ainda, por via oblíqua, outros comentários anti-ciclismona imprensa, como cada vez que a indústria automobilística chama-a em seus saguões para pressionar o governo ou fomentar crise econômica, anunciando férias coletivas. Visam contribuir para com o debate da mobilidade?
Por tudo isso, é plenamente aceitável hoje escrever coisas que são, literalmente, um chamado à violência no trânsito ou se sentar em um restaurante e dizer coisas como: “ciclistas-vermelhos malditos, devemos aniquilá-los”.
E se a inauguração da ciclovia da Avenida Paulista representa uma revolta – ou um devir revolucionário na cidade operária – a imprensa e setores políticos conservadores, por outro lado, tentam transformar as ruas de sampa em uma batalha campal.
O que pode fazer um ciclista contra alguém em um carro? Se esta batalha chegar a produzir resultados, temos de um lado indivíduos vulneráveis e, de outro, duas toneladas de aço. Isso se chama condenação à morte, massacre.
No fundo, a guerra ao ciclismo encampada por parte da mídia tonou-se, com toda naturalidade, não simplesmente uma maneira de transcrever em termos “críticos” um discurso político, senão realmente uma maneira de ocultar um discurso político sob uma vestimenta de notícia. Diante disso, “ser” uma bicicleta na cidade operária é um ato revolucionário, que empodera o indivíduo – com a força de seu corpo – pelo exercício daquilo que acredita. E como procuramos fazer, é preciso drenar o veneno do debate.
[1] Parquet, no ramo do Direito, significa Ministério Público ou faz referência a um membro do Ministério Público.