Um cidadão sem o carro: a pior degradação?
João Vitor Cardoso, um leitor nosso, fez uma reflexão em relação ao Projeto de Lei nº 1.500/2015 e em relação a queda da liminar que paralisou parcialmente as obras das ciclovias de São Paulo.
Uma pequena contribuição para com o debate no TJSP, que será retomado ao final do mês com o julgamento de mérito da causa. Segue o texto:
O que seria uma “rede cicloviária”? Para contestar, precisamos pensar para além dos marqueteiros de bancos e periódicos abertamente favoráveis a governos que os apoiam, e para ainda mais além daqueles que simplesmente rejeitam-na por não usarem mais que o próprio umbigo, como órgão de reflexão.
Pois, é preciso extravasar a visão mercantil do “espaço público” e superar uma leitura desgastada do fenômeno urbano, cega do mundo que irrompe, da pequena porcentagem daqueles que possuem automóveis, determinarem como se fazem políticas públicas.
João Cardoso
Um cidadão sem carro: a pior degradação?
Juridicamente, a Política Nacional de Mobilidade Urbana define a bicicleta como transporte “não motorizado”. Ao não chamar a coisa pelo nome estrito, como um não-algo, uma não coisa em si, somente análoga aos modais dependentes de carbono, envolve-a de todo um espaço retórico. Este jogo discursivo totalitário, centrado na simbologia do carro, estabelece processos de segregação em distâncias morais que fazem da cidade um mosaico de pequenos mundos que se tocam, mas não se interpenetram.
Com parecer positivo de sua Comissão de Desenvolvimento Econômico, Transporte e Sistema Viário subiu à Câmara Municipal de Belo Horizonte, no último dia 11, o Projeto de Lei nº 1.500/2015. Na contramão dos ciclistas belo-horizontinos, o projeto estabelece um curso para capacitação de usuários de bicicleta, handbikes e similares. O texto do projeto curiosamente deixa um espaço jurídico vazio no tocante à obrigatoriedade da tal “capacitação”. Ao ser publicada pelo portal Hoje em Dia, a informação mobilizou as redes sociais. O autor do projeto, Daniel Nepomucemo (PSB), na manhã seguinte, por sua conta do Facebook, desculpou-se aos ciclistas, afirmando que “em momento algum, o Projeto de Lei pretende criar carteiras para ciclistas”. Contudo, a proposta legislativa é clara e determina: “os aprovados receberão um certificado e uma carteira de ciclista que ficarão sob responsabilidade e custo do usuário”.
É de Rui Barbosa a seguinte afirmação: “tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”. Na verdade – como continua –, “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. A igualdade e a desigualdade são ambas direito, conforme as hipóteses e situações”.
No corpo da justificativa do Projeto de Lei, o Deputado mineiro equipara a bicicleta ao carro – de novo – de maneira mecânica, impondo ao ciclista uma obrigação similar à do motorista, por ambos “dividirem o mesmo espaço” (será que nesse caso não se deveria então propor o mesmo para skatistas e até pedestres?). Não se leva em consideração os diferentes potenciais lesivos, bem como a sujeição do ciclista a um risco maior. No fundo, o projeto oculta um desejo de neutralizar a insubmissão que o pedal representa ao funcionamento dos mecanismos disciplinares, que atuam precisamente no controle da vida (de corpos tornados fracos) por sua exposição à morte.
Cá entre nós, não se protege a bicicleta com burocracia. Ela é a luta contra a sedentarização e as formas marqueteiras de governar a vida, de pacificar o ingovernável.
Ademais, há suspeita de inconstitucionalidade nesta norma, que decorre, em linhas amplas, de sua colisão com a repartição constitucional de competências legislativas determinada pela Constituição Federal de 1988, cujo Art. 22, XI, dispõe que compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte. Não teria a municipalidade invadido a esfera legislativa da União?
Enquanto isso, em São Paulo, a Prefeitura conseguiu suspender a medida liminar ajuizada pelo Ministério Público Estadual, por parcimônia do desembargador José Renato Nalini, Presidente do TJSP, que decidiu que a paralisação parcial das obras potencializava o risco de acidentes e a violência no trânsito. O processo aguarda julgamento definitivo em primeira instância.
Ademais, a relação do Poder Judiciário com as tais políticas públicas está na observância de que estas sejam cumpridas em consonância com a justa expectativa da sociedade, é dizer, no sentido estipulado pela agenda do Executivo eleito e pelas leis promulgadas pelo Legislativo, veiculando juridicamente as transformações sociais ansiadas pela multidão de administrados.
Nesse sentido, a plataforma de governo eleita pelos paulistanos em 2012 instituiu metas tipológicas e estipulou finalidades técnicas da Administração Pública, no tocante ao estabelecimento de uma rede cicloviária.
Contudo, entre os paulistanos, não há nada mais ridículo que a dimensão sagital alcançada pela politização (leia polarização) do debate em torno das magrelas. Ora, se ser favorável ao transporte por duas rodas significa estar à esquerda, Itaú e Bradesco devem estar orquestrando algum golpe comunista.
Se considerarmos o relatório anual de acidentes fatais da CET de São Paulo, fica claro que a judicialização da rede cicloviária presta anuência a um assassinato indireto: multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a negação, a invisibilidade, a exclusão, etc. Pois, de agosto a dezembro de 2014, com a implantação dos primeiros quilômetros de ciclovias na capital, o registro de mortes de ciclistas caiu 10%.
Ainda, como demonstra o Boletim Técnico nº 50 da CET, os planos das ciclovias – em geral colocados em prática pela atual Prefeitura – têm sido desenvolvidos nos últimos 30 anos e demonstram a viabilidade da bicicleta como transporte para o cotidiano, em harmonia com os demais modais. Portanto, a questão está aquém de um lapso de planos urbanísticos. Mas, até que ponto o sucesso das políticas de urbanismo depende de senso comum, até que ponto depende de capacidade técnica? Primeiro vem a ciclovia, depois os ciclistas?
Se considerarmos a cidade de Bogotá, cujo percentual de viagens feitas em duas rodas não superava 1% antes da implantação da sua rede cicloviária e que hoje conta com 7% de viagens feitas em duas rodas. Ou Londres, que investirá R$ 4 bilhões para melhorar sua infraestrutura cicloviária, e cujo número de ciclistas aumentou 70% em cinco anos, após serem implantados 40 km de ciclovias na cidade. Diríamos sim, infraestrutura cicloviária induz demanda e promove a migração de outros modais para a bike. Bastaria pensarmos nas cidades de Portland, Nova Iorque, a obscura Oslo ou Amsterdã. E todas gélidas! Quem dirá deste alegre trópico? (sic)
Neste cenário mórbido do trânsito paulistano, do confinamento a céu aberto, do “fique que assim andarás”, pensado a partir do carro e para o carro, seja nas marmitas ou apenas pessoas amassadas nos metrôs, ou nos motoboys, malabaristas da sorte, estatelados no asfalto, vemos que na cidade operária a vida é insignificante. Ora, quem não pode ter um carro não tem o que exigir! E a bicicleta representa um questionamento à tecnologia disciplinar do trabalho, cuja ideia é extrair o máximo de energias dos corpos (produtivos), tornados úteis e dóceis ao mesmo tempo. Noutras palavras, como diria Tom Zé, “um cidadão sem a gravata é a pior degradação”.
A reflexão que se faz necessária é, a uma, ampliar os direitos para trabalhadores descontentes em levar 700 kg de ferro para passear todos os dias. A duas, que, com as ciclovias, ciclorotas, ciclocalçadas etc., há quem queira pôr os ciclistas fora de circulação, como branda em sua coluna na Folha de SP Luiz Felipe Pondé, clamando pela submissão do ciclista ao controle do Estado. Pois o custo da urbanização é o policiamento. Para o ciclista, quanto menos a magrela se tornar governável, melhor. Criar “carteiras” ou confinar os indivíduos nas ciclofaixas: está aí o paradoxo.
Todavia, este paradoxo é apenas aparente. Rejeitamos o ceticismo não construtivo e excessivo, assim como seu irmão gêmeo, o niilismo – essas duas recorrentes doenças do narcisismo intelectual.
Afinal, como diz M. Foucault, o “biopoder” é um “poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida”. Biopolítica significa, assim, tornar a atividade do Estado numa ação de governo sobre a vida biológica dos indivíduos e, sobretudo, de uma população, uma espécie, pela restrição da liberdade de movimento do corpo humano.
Entrementes, não se pode afirmar, de antemão, que as ciclovias transformarão São Paulo em uma Nova Amsterdam. Tampouco que a ciclofaixa, por si, implique na construção de uma cidade com novas possibilidades de sociabilização, ou que sua incorporação pelo Estado seja mera expressão de poder regulamentar. Ao que tudo indica, tão-somente sob uma ótica míope e de tempos breves podemos fazer previsões infaustas e imediatistas em torno do que se avizinha no horizonte paulistano. Pois, atualmente, a rede cicloviária é um mal necessário.