Mais amor, menos pudor!
Pedalar pelado não é das coisas mais confortáveis do mundo. Para além das questões práticas de selim e tal, existe uma questão bem mais complexa diante de um mundo preconceituoso...
Pedalar pelado não é das coisas mais confortáveis do mundo. Para além das questões práticas de selim e tal, existe uma questão bem mais complexa diante de um mundo preconceituoso, machista e conservador que não sabe lidar com o nú em protestos (principalmente feminino) nem com as diferenças – entre os corpos e entre escolhas.
Participar do World Naked Bike Ride pode ser uma vivência inesquecível de aproximação entre pessoas da vida real que estão ali, cheias de “imperfeições”, expostas, com pouca (ou nenhuma) roupa, diante de julgamentos morais que, pelo menos naquele microcosmos de espaço e tempo, precisam ser revisto – é justamente aí onde mora a beleza da experiência.
Este ano, pela terceira vez consecutiva, a pedalada rolou à noite e, coincidências à parte, também há 3 anos acontece com muita tranquilidade sem a presença da polícia “acompanhando” a manifestação. A única que seguiu firme a massa do início ao fim foi uma lua cheia maravilhosa garantindo um clima delicioso de muito amor, paz e alegria por onde passássemos.
Dentro da massa de ciclistas-peladões o ambiente é super seguro e confortável. A nudez é apoiada e todos respeitam a decisão de cada um: “tão nú quanto ousar”, “obsceno é o trânsito”, “eu nasci pelado”, “mais amor, menos pudor”, “meu corpo, minhas regras”, “respeite” – foram algumas das frases pintadas e/ou gritadas em um coro arrepiante.
Muito além da bicicleta
Estranho como mesmo com todos os incentivos, poucas mulheres têm de fato a coragem de expor seus corpos por completo e – digo com propriedade – muito mais pela recepção fora da massa do que dentro dela. No grupo somos protegidos uns pelos outros, é uma sensação única de acolhimento, força e identificação, afinal estamos todos do mesmo lado da moeda. Este ano não foi diferente, muita gente (calculo mais de 500 pessoas) e felizmente muitas mulheres também.
Somos cada dia mais numerosas, enfrentando o machismo, o desrespeito e assédio diariamente nas ruas, problemas graves que têm efeitos devastadores.
É impossível não sentir, ver e ouvir as reações invasivas de uma cidade que basicamente não é acostumada com esses trajes (ou a falta deles). Na Vila Madalena, bairro nobre, “muderno”, “criativo” e boêmio de São Paulo, os olhares e comentários mais abomináveis partiam das mesas de bar entre rapazes bem vestidos e, pasmem, de outras garotas.
Com a diferença de que enquanto elas se isolam em carros-forte, argumentos-blindados e apartamentos-prisão, a gente se expõe de corpo e alma para escancarar um problema gravíssimo do qual elas também são vítimas: o assédio que limita o direito das mulheres à cidade.
Deixar de caminhar à noite, pensar duas vezes antes de colocar uma roupa curta, atravessar a rua ao avistar um estranho e deixar de pedalar por medo de abordagens são sintomas graves de uma doença silenciosa que se espalha como um câncer por nossas cidades – Muito por falta de uma discussão responsável e séria sobre o tema.
Sim, a bicicleta!
Apesar disso, felizmente, por todos os lugares que passamos, a maioria das pessoas nos recebeu com olhares de espanto seguidos de risadas gostosas, acenos de apoio e expressões de admiração. Muita, muita gente mesmo aplaudiu a massa em apoio à causa da bicicleta. As reações provocadas pela pedalada pelada têm sido cada dia mais amistosas e de compreensão sobre sua importância para a sociedade, sinal de que existe sim um mundo muito diferente do que passa na TV.
Por falar em TV, sempre ela para criar as bizarrices mais estranhas na cobertura de qualquer manifestação. Nem vale a pena colocar aqui o link, mas esse ano novamente a equipe de um programa humorístico estava lá na Praça do Ciclista para cobrir o encontro, batendo ponto com a abordagem de rotina: fútil, inútil e superficial. A dupla de repórteres foi vaiada desde a hora que chegou na concentração até a hora que foi embora, sob xingamentos e tintas. Como confiar em um programeco que ganha a vida fazendo chacota das pessoas, piadas sem graça, expondo-nos ao ridículo e “objetificando” as mulheres? Francamente…
Porém a beleza de todo movimento vai além dos olhos viciados da imprensa tradicional e do julgamento moral de quem só enxerga o mundo sobre vidros e grades de proteção.
É preciso ir além, tem que participar para ver de perto o que as coisas significam de verdade. Como diz uma grande amiga minha, a Natália Garcia, só quem voa consegue enxergar em outra dimensão o que está acontecendo.
Saia da superfície, sobe aí na bicicleta e vem voar com a gente!