Plano diretor e a bicicleta: um copo pela metade
O debate sobre o novo Plano Diretor Estratégico (PDE) está chegando à fase final em São Paulo. Até o dia 19 de dezembro acontecem audiências públicas promovidas pela Câmara Municipal.
O debate sobre o novo Plano Diretor Estratégico (PDE) está chegando à fase final em São Paulo. Até o dia 19 de dezembro acontecem audiências públicas promovidas pela Câmara Municipal.
Os encontros fazem parte da última fase participativa do processo, iniciado este ano pela Prefeitura, e que tem como objetivo rever os instrumentos de planejamento urbano da cidade. Além do Plano Diretor, serão revistos os Planos Regionais e de Bairro, a Lei de Uso e Ocupação do Solo, o Código de Obras e o Plano de Mobilidade, entre outros.
O que está em discussão agora é a proposta de lei formulada pelo Executivo a partir da análise do PDE de 2002 e das contribuições da sociedade. Existem avanços em relação à inclusão da bicicleta, mas o poder público poderia (ou deveria) ter sido mais ousado ao tratar da mobilidade humana em São Paulo.
O copo meio cheio fica por conta da inclusão da mobilidade por bicicletas no texto: ao contrário do PDE de 2002, que sequer considerava a existência deste tipo de transporte, a proposta atual prevê a criação de um sistema cicloviário (artigos 184 e 185) e estabelece algumas diretrizes para a sua implantação (artigos 195 a 197).
As diretrizes gerais consideram aspectos da Lei Nacional de Mobilidade Urbana, aprovada no início de 2012, dando prioridade ao transporte coletivo e aos modos “não-motorizados”.
Integração com o transporte coletivo A ênfase da atual proposta é a criação de redes cicloviárias de integração com o transporte coletivo. O estabelecimento de políticas que garantam as demais possibilidades de uso das bicicletas foram transferidas para os futuros Plano de Mobildiade e para os planos regionais e de bairro.
Ainda que a integração com o transporte coletivo seja um componente fundamental da mobilidade por bicicletas em São Paulo, ele não é único.
Quem opta pela bicicleta deveria ter o direito garantido de percorrer pequenas distâncias até um terminal de ônibus ou metrô, mas também deve ser atendido por políticas públicas que garantam a segurança para “longas” distâncias.
Até porque o entendimento do que são “longas distâncias” está absolutamente comprometido por uma distorção rodoviarista da percepção sobre o espaço urbano: quem só anda de carro tem a impressão de que as distâncias em São Paulo são muito maiores do que de fato são.
A dificuldade em superar distâncias em cima de uma bicicleta está menos no número de quilômetros percorridos e mais na dificuldade enfrentada a cada metro de convivência com os motorizados nas ruas.
Todas as vias são cicláveis e é preciso garantir isso O Plano Diretor poderia ter especificado algumas ações estratégicas para os deslocamentos por bicicleta que não buscam a intermodalidade, mas preferiu deixa-las para o Plano de Mobilidade e para os planos regionais.
A criação de áreas de moderação de velocidade, a restrição de estacionamento de veículos motorizados, o desestímulo ao uso do automóvel e também a travessia das pontes dos rios Pinheiros e Tietê por pedestres e ciclistas, propostas pela Ciclocidade durante as audiências que aconteceram no primeiro semestre, poderiam ter sido contempladas como diretrizes para a cidade.
A moderação da velocidade, por exemplo, é tão ou mais estruturante para o desenvolvimento urbano quanto a proposta de desativação de parte do Campo de Marte (art 181), que visa assegurar a verticalização de alguns bairros do chamado Arco do Tietê.
Resquícios do rodoviarismo É no artigo 193 (inciso V, parágrafo 1o) que os resquícios da lógica rodoviarista se sobressaem. Ao tratar do sistema viário estrutural, o texto diz que este sistema “PODERÁ receber adaptações que permitam o compartilhamento adequado do espaço (…) garantidas as condições de segurança”.
O sistema viário estrutural é composto majoritariamente pelas chamadas avenidas de fundo de vale, ou seja, as ligações mais planas e diretas entre vários pontos da cidade. Ao estabelecer apenas uma possibilidade de divisão do espaço entre motorizados e modos suaves (bicicletas, skates, patins), o texto repete a lógica de prioridade aos motorizados no espaço que seria mais conveniente aos ciclistas.
Se o desejo para os próximos 10 anos é desestimular o uso de automóveis e garantir condições para o uso de outros modos de transporte, o texto deveria garantir a divisão do espaço no sistema viário estrutural, e não apenas condiciona-lo a uma possibilidade que atenda a “condições de segurança” difíceis de serem obtidas em avenidas com alta velocidade e fluxo intenso de motorizados.
Políticas públicas para além de um mandato O buraco, no entanto, é sempre mais embaixo. Conforme nota o urbanista João Sette Whitaker, existe uma certa “glorificação” equivocada do Plano Diretor como instrumento capaz de balancear os múltiplos desejos de uma cidade sem interferências da mudança de governos.
O exemplo do PDE de 2002 é emblemático nesse aspecto. Apesar de não considerar as bicicletas, o plano em vigor foi sucedido pela realização de Planos Regionais Estratégicos (PRE) em cada uma das subprefeituras e também previa a realização de um Plano de Circulação e Transportes.
Em 2004, os PREs resultaram na previsão de 367km de infraestrutura cicloviária na cidade, que deveriam estar prontos até 2012. Esta proposta contemplatava principalmente a utilização de rotas em avenidas de fundos de vale, criando uma rede estrutural na cidade.
Mesmo com força de lei, nenhum dos projetos previstos nos PREs saiu do papel e os administradores públicos responsáveis pela aplicação do Plano Diretor não foram punidos pela omissão. O Plano de Circulação e Transportes, previsto pelo PDE de 2002, foi redigido, mas sequer chegou a ser aprovado.
Um copo meio vazio A mobilidade por bicicletas não é, certamente, o componente mais importante do planejamento de uma cidade complexa e desigual como São Paulo. É fundamental tratar do transporte coletivo, da distribuição de habitações e oportunidades ao longo do território e da solução de outros problemas capazes, inclusive, de facilitar a mobilidade humana.
A proposta atual transfere muitas definições importantes para o Plano de Mobilidade e para os planos de bairro, contemplando apenas a integração da bicicleta com o transporte coletivo.
Ou seja, o primeiro esforço necessário será garantir a inclusão da bicicleta nestes dois instrumentos. O segundo, e mais difícil, é conseguir transformar o que está previsto pela lei em realidade.
Se o Plano Diretor de 2002 e os PREs de 2004 tivessem sido cumpridos, teríamos uma boa rede cicloviária em diversas avenidas e a possibilidade de criação de redes complementares dentro dos bairros para a integração com o transporte coletivo. O PDE que será aprovado em 2014 prevê o inverso do que não foi feito e deixa de lado a rede estrutural.
O desafio continua o mesmo: promover o controle social sobre as políticas municipais, primeiro tentando corrigir alguns detalhes da atual proposta de Plano Diretor e, em seguida, garantindo que a mobilidade humana esteja melhor contemplada no Plano de Mobilidade e nos Planos Regionais.