A Bicicletada está morta. Longa vida à Bicicletada! (Parte 4) O hype da bicicleta
A chegada da Bicicletada ao mainstream no ano de 2009 teve duas consequências opostas: o fortalecimento da discussão e um enfraquecimento da Massa Crítica.
Texto originalmente publicado em inglês no livro Shift Happens: Critical Mass at 20, organizado por Chris Carlsson, LisaRuth Elliott e Adriana Camarena por ocasião dos 20 anos da Massa Crítica de São Francisco em 2012. O livro apresenta artigos sobre bicicletadas em diversas cidades do mundo e pode ser adquirido em versão impressa ou ebook. Este artigo, inédio em português, foi dividido em quatro partes para o Bike é Legal.
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A chegada da Bicicletada ao mainstream no ano de 2009 teve duas consequências opostas: por um lado, era notório o fortalecimento da discussão pública sobre a mobilidade urbana; por outro, acontecia um significativo enfraquecimento da Massa Crítica como movimento contestador e inspirador de novas realidades. A transformação da rebeldia e da transgressão em produto costuma ser muito eficiente no capitalismo, especialmente em sociedades com baixo nível de maturidade política como a brasileira.
Ao mesmo tempo que a potência libertária da Bicicletada começava a fraquejar, uma profusão de blogs, grupos, coletivos e entidades ligadas ao tema aparecia. Por um lado, esta diversidade criava novos horizontes, fazendo com que os debates propostos pela Bicicletada atingissem um número cada vez maior de pessoas. Por outro, a excessiva fragmentação começou a gerar disputas, afobação, dispersão e pouca efetividade das ações.
Ao final de 2009, muitos dos participantes da Bicicletada começaram a trilhar as possibilidades de realização de projetos individuais ou a buscar novos horizontes para a atuação coletiva. A mistura relativamente confusa entre o desejo de se libertar da rotina entediante do trabalho e a vontade de transformação da sociedade resultou em pequenas sabotagens, inflou egos, distanciou pessoas e enfraqueceu momentaneamente as perspectivas da luta.
O poder público e a inciativa privada começavam a enxergar a bicicleta como meio de transporte, inserindo conceitos nascidos na Bicicletada inicialmente em construções publicitárias ou que buscavam dividendos eleitorais, deixando de lado ações de médio e longo prazo.
A assimilação de imagens, conceitos e até slogans nascidos na Massa Crítica por empresas e políticos trouxe para o imaginário da classe média paulistana alguns valores importantes para a melhoria das condições urbanas, mas talvez estes valores ainda continuem bastante restritos a esta mesma classe média.
Não existem pesquisas confiáveis sobre o número de ciclistas em São Paulo, mas é possível que este seja menor hoje do que em 2005. Ao longo da última década, enquanto os mais ricos encontravam uma solução individual para o problema coletivo da imobilidade urbana, as classes mais baixas (que sempre utilizaram mais bicicletas) vivenciaram uma significativa migração para a solução também individual da motocicleta ou do carro, que passaram a ser subsidiados por amplas políticas tributárias e de crédito.
O crescimento do número de ciclistas no centro expandido e uma eventual diminuição nas periferias têm a mesma raiz: o sucateamento dos sistemas de transporte coletivo e das políticas públicas de planejamento e gestão urbana. Se o jovem de classe média passou a utilizar a bicicleta para deixar de gastar 1 hora percorrendo 7km, o jovem da periferia passou a utilizar a moto para economizar 2 ou 3 horas ao percorrer 20 ou 30 quilômetros.
A criação de uma comunidade atuante de ciclistas a partir da Bicicletada colaborou para a ampliação do debate sobre a mobilidade urbana, mas talvez ainda falte maturidade para enxergar todos os desafios e paciência para agir sobre as dinâmicas sociais envolvidas na transformação da realidade.

Um epílogo aberto
Ao longo de 2010 e 2011, muitos dos participantes mais antigos deixaram de participar da Bicicletada ou apenas se encontravam na Praça do Ciclista enquanto a massa percorria a cidade. O espaço “lúdico-educativo” havia se tornado apenas mais um passeio de bicicleta, servindo também para disputas infantis com motoristas ou entre os próprios ciclistas.
Na manhã de sexta-feira, 2 de março de 2012, a avenida Paulista se tornaria mais uma vez o cenário de uma noite com final aberto. Três anos depois da morte de Márcia Prado, a bióloga Juliana Dias foi atropelada por um ônibus enquanto pedalava a caminho do trabalho. Testemunhas e câmeras de vigilância registraram que Julie, como era conhecida a bióloga, foi fechada por um segundo ônibus, que a derrubou na pista e a jogou para debaixo do veículo que tirou sua vida.
A notícia se espalhou rápido e, pouco tempo depois do incidente, uma dezena de ciclistas já estava no local. Ainda sem a confirmação da identidade da vítima, começava a mobilização na lista da Bicicletada e nas redes sociais.
Parcialmente interditada para a perícia, a avenida registrava trânsito lento. Nada diferente de sua rotina habitual de congestionamento. Por telefone, um amigo que foi até a delegacia naquela manhã confirmava que a vítima era Juliana. Por volta do meio-dia, uma dezena de ciclistas furou o bloqueio policial que impedia a “obstrução da via” e fez um “die in” no meio da avenida, deitando na pista com suas bicicletas ao lado.
A longa tarde daquela sexta-feira repetiria o roteiro de 2009, potencializado pela difusão de sites de redes sociais como Facebook e Twitter. Dezenas de mensagens foram postadas marcando uma homenagem-protesto para o começo da noite. A mídia corporativa mais uma vez noticiava com grande destaque o atropelamento em São Paulo e destacava também 4 casos de ciclistas mortos em outras cidades do país no mesmo dia.
Por volta das 6 da tarde, a Praça do Ciclista começava a receber os primeiros manifestantes. Juliana participava da Bicicletada e também de um coletivo chamado Pedal Verde, que se encontra uma vez por mês para pedalar e plantar árvores na cidade.
Pouco depois das 8 da noite, começou a ventar forte na praça e as primeiras gotas de chuva começaram a cair. Se em dias normais de Bicicletada a saída da massa seguia o inconsciente coletivo de quem estava presente no local, naquela sexta-feira de 2012 a chuva ditou o momento de partir. Cerca de 700 pessoas empurrando suas bicicletas marcharam até o local do atropelamento para instalar uma ghost bike e denunciar mais uma vítima do trânsito.
No meio do percurso de pouco mais de 1km, a chuva se transformou em tempestade e assim ficou até o final da caminhada. O céu chorava com força, se misturando às lágrimas, aos cantos e aos gritos dos ciclistas pedindo “mais amor, menos motor”.
No local do atropelamento e debaixo do temporal, um “die in” massivo e não programado aconteceu na pista encharcada de água. Deitado no asfalto, só me lembro que a temperatura da água que corria no chão era muito mais agradável do que aquela que caía do céu. Alguns minutos depois de instalada a ghost bike, a tempestade se transformou em uma garoa fina.
A ghost bike em homenagem à Juliana Dias permanece no local, poucos metros adiante daquela que havia sido instalada em 2009 para homenagear Márcia Prado. A avenida Paulista é o trajeto diário de centenas de ciclistas em São Paulo, uma ligação plana e direta entre as zonas sul e oeste da cidade.
Durante o final de semana seguinte, mais de 15 cidades brasileiras programaram uma manifestação nacional, para a terça-feira, 6 de março. Em São Paulo, cerca de 1000 ciclistas se reuniram e pedalaram por melhores condições para os seus deslocamentos.
A morte tem o potencial de promover a união entre que permanecem vivos. Nas semanas seguintes, diversos grupos e indivíduos que haviam deixado de participar da bicicletada começaram a promover diálogos e conversas informais.
Uma reunião de coletivos e entidades foi chamada para o dia 24 de março. Além de iniciar a discussão sobre as perspectivas e identidades de cada grupo, a conversa trouxe a ideia de retomar a participação mais efetiva na Bicicletada.
Em 30 de março, entre as mais de 400 pessoas que participaram da Bicicletada daquele mês, era possível ver rostos de pessoas que já não participavam mais dos encontros. A zona autônoma temporária que se abriu em março de 2012 foi bastante agradável e tranquila.
A efervescência daquele mês de março arrefeceu: nas pedaladas seguintes, o tédio e falta de criatividade voltava a imperar. Grupos, coletivos, entidades e cidadãos seguiram suas vidas e projetos.
A Bicicletada segue existindo e reúne espontaneamente cerca de 150 ciclistas a cada última sexta-feira do mês. Se o vigor das ações se perdeu ao final da primeira década do século XXI, é indiscutível o papel de catalisador deste movimento para muitas transformações históricas que ainda seguem em estágio inicial.
Em uma perspectiva radical, talvez o resultado desta fragmentação e consequente assimilação por mecanismos do status quo não seja tão efetivo quanto uma possível evolução também radical do movimento originário. Mas a História não é feita de possibilidades no passado, e sim do aprendizado sobre seus processos e da construção cotidiana do futuro. A superação da sociedade do automóvel tal qual conhecemos durante o século XX é um fato inexorável. Resta saber quanto tempo levará e qual será a profundidade desta transformação. A Bicicletada está morta. Longa vida à Bicicletada!