A absurda proibição do deslocamento de bicicleta em algumas rodovias
Viajar para outras cidades usando a bicicleta, dependendo apenas de seu próprio esforço para chegar ao destino, é uma experiência incrível.
Viajar para outras cidades usando a bicicleta, dependendo apenas de seu próprio esforço para chegar ao destino, é uma experiência incrível. A sensação de desafio, de superação do que você acreditava serem seus limites, é sensacional. E não é só a chegada ao destino que fascina quem cicloviaja: é também o trajeto, o durante, o caminho, que nos ilumina com paisagens maravilhosas, pássaros e pequenos animais, pessoas, sorrisos pelo caminho. Detalhes da viagem que nos marcam, mudam a maneira como vemos o mundo.
Mas infelizmente nem sempre podemos desfrutar da viagem com tranquilidade. E olha que não estou falando de maus motoristas ou de assaltantes, mas das próprias concessionárias das rodovias privatizadas, que deveriam nos proteger e garantir nossa viagem.
Há muitos relatos de ciclistas que foram impedidos de viajar e foram obrigados a voltar para casa pela Polícia Rodoviária, que segue instruções das concessionárias. Isso costuma acontecer principalmente com as estradas administradas por empresas do grupo Ecorodovias – entre elas, as rodovias dos Imigrantes e Ayrton Senna/Carvalho Pinto, em São Paulo.
Em dezembro de 2008, centenas de ciclistas tentaram simultaneamente descer a serra para ir de São Paulo a Santos. A ação, que ficou conhecida como “Bicicletada Interplanetária”, foi barrada pela concessionária Ecovias, que impediu que os ciclistas prosseguissem, com uso da Polícia Rodoviária e de uma interpretação extremamente conveniente (e errônea) das leis.
Em 2011, um grupo de 60 cicloturistas que se dirigia de São Paulo a São José dos Campos, dois a dois pelo acostamento, foi proibido de utilizar o corredor Ayrton Senna/Carvalho Pinto. Depois mais de uma hora de discussão com os agentes da Polícia Rodoviária que impediam o grupo de continuar e de quase uma hora ao telefone com a concessionária, o grupo precisou voltar para casa. Os ciclistas haviam tentado autorização com quase um mês de antecedência, mas foram ignorados. A argumentação para impedir a descida variou do simples “é proibido”, derrubado pelo conhecimento das leis dos ciclistas presentes, até finalmente esbarrar no fato da própria concessionária ter retirado o acostamento em muitos trechos.
De lá para cá, a concessionária e a Polícia Rodoviária têm feito vista grossa em muitos casos, mas a realidade é que o ciclista precisa contar com a sorte para não ser barrado. Quando decidem impedir o deslocamento, os policiais são irredutíveis e não adianta apresentar-lhes as leis, já que eles têm suas ordens e irão cumpri-las.
O que diz a Lei
O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) determina, nas entrelinhas do artigo 58 e do parágrafo 1º do artigo 244, que a circulação de bicicletas é permitida nos acostamentos:
(Capítulo XV – das infrações) Art. 244. Conduzir motocicleta, motoneta e ciclomotor:
§ 1º Para ciclos aplica-se o disposto nos incisos III, VII e VIII, além de:
(…) b) transitar em vias de trânsito rápido ou rodovias, salvo onde houver acostamento ou faixas de rolamento próprias
Não se pode proibir o deslocamento dentro do território nacional, como garante a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XV:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…) XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens
Portanto, não se pode impedir o direito de se deslocar de uma cidade a outra. Se isso não puder ser feito com segurança pela rodovia principal (e deveria, é obrigação da concessionária e do governo), que seja disponibilizado um caminho alternativo. No caso da rodovia dos Imigrantes, a já conhecida Estrada de Manutenção.
Tornar seguro ou oferecer alternativas é obrigação
Tanto a concessionária quanto o órgão público que defende seus interesses em São Paulo, a ARTESP, continuam insistindo na proibição, admitindo que a via não é segura para ciclistas. Assumem isso oficialmente, sem mover um dedo para corrigir essa grave falha, que por sinal contraria o item II do art. 21 do Código de Trânsito:
Art. 21. Compete aos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
(…) II – planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas
Veja aqui uma longa discussão por e-mail com a Ecovias e com a ARTESP, em 2009, a respeito do direito de se deslocar de bicicleta na rodovia dos Imigrantes. Apesar de toda a argumentação, embasada em legislação federal, tanto a concessionária quanto o órgão que deveria defender os interesses do cidadão se mostraram irredutíveis, além de estranhamente alinhados no discurso. É possível notar em sua argumentação a aposta no desconhecimento das leis por parte do cidadão e a dificuldade para justificar a decisão frente à exposição do direito legal, que termina por ser arbitrária.
Proibindo a circulação na Anchieta, na Imigrantes e impedindo o acesso à Estrada de Manutenção, qual seria a alternativa? Mais do que duplicar o trajeto, aumentando a distância em mais de 100 km, para utilizar a Mogi-Bertioga? Um absurdo fora de questão.
A substituição de acostamentos por faixas adicionais de tráfego é outro absurdo injustificável, mesmo se analisado apenas pelo aspecto do deslocamento motorizado: onde encostar um carro quebrado em um trecho sem acostamento? E a retirada desses espaços traz outro efeito colateral perigoso: o entendimento, por parte de maus motoristas, de que não há mal nenhum em usar um trecho de acostamento quando o trânsito congestiona na rodovia. Afinal, se é um comportamento em certa medida incentivado pela própria concessionária em muitos trechos, por que haveria de ser punido senão pela compulsão em arrecadar dinheiro com multas? O objetivo primordial do acostamento, que além de servir como área de emergência para os motoristas é a “calçada” da rodovia, garantindo o deslocamento de pedestres e ciclistas, acaba se perdendo de vista.
Em última análise, parece que os ciclistas não são bem vindos nas rodovias simplesmente porque não pagam pedágio. No raciocínio capitalista das concessionárias, que acaba por ignorar o direito de circulação garantido por lei, não há porque investir em reformas ou em simples sinalização que garanta a segurança do ciclista, se não haverá retorno financeiro. Mas não há justificativa econômica para se descumprir a lei de forma tão flagrante, ofensiva e irresponsável.