Tirando a poeira dos dedos ou “muito prazer”
Meu envolvimento militante com as bicicletas começou em 2004, com meu trabalho de conclusão de curso na faculdade de jornalismo, um vídeo chamado Sociedade do Automóvel.
Aprendi com o professor Milton Santos que é sempre bom se apresentar antes de começar a falar. A lição foi dada no ano 2000, em um auditório lotado da PUC-SP. Responsável pela mediação da palestra sobre globalização e território, eu fui direto ao assunto: disse que era uma honra recebIê-lo, falei algumas palavras sobre o tema do evento e logo passei o microfone apresentando-o apenas como “Milton Santos”. Com toda a gentileza que lhe era peculiar, o notável geógrafo começou sua fala dizendo que ninguém tinha a obrigação de saber quem era Milton Santos, repassou seu currículo sem cair no pedantismo acadêmico e depois deu uma aula sobre a “outra globalização”, tema de seus estudos à época.
Lição aprendida, vamos lá: sou Thiago Benicchio, jornalista, atualmente diretor da Ciclocidade – Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo e sinto-me honrado de ter sido convidado para escrever no Bike é Legal. Meu envolvimento militante com as bicicletas começou em 2004, com meu trabalho de conclusão de curso na faculdade de jornalismo, um vídeo chamado Sociedade do Automóvel.
Acervo Thiago Benicchio
Thiago Benicchio, diretor da Ciclocidade.
Até aquela data eu era um carrodependente, daqueles que vai até a padaria de carro. A pesquisa para o vídeo abriu alguns horizontes na minha cabeça: o papel determinante e avassalador do automóvel na constituição das cidades, as limitações injustas do transporte coletivo, o resgate da cidade que existe no ato de caminhar, as relações economicas entre guerras por combustível e urbanismo, e por aí vai.
Mas a descoberta pessoal daquele ano de 2004 foi que eu, um jornalista boemio e não praticante de esportes, também estava apto a usar a bicicleta. Até então eu tinha certeza de que a bicicleta era coisa de atleta, que era necessário usar roupas de lycra, acordar cedo e frequentar academias de ginástica para ser um “ciclista”. Nada contra, muito pelo contrário: admiro quem tem essa disposição, mas nunca foi a minha praia.
A bicicleta voltou para a minha vida depois de entrevistar o João Campos, um dos personagens do Sociedade do Automóvel. Ele nos apresentou um movimento chamado “Bicicletada“, que juntava um punhado de pessoas montadas em bicicletas uma vez por mês em um “passseio-manifestação”. O movimento tinha o seu auge uma vez por ano, em 22 de setembro, Dia Mundial Sem Carro.
Foi naquele 22 de setembro de 2004 que, pela primeira vez na idade adulta, eu pedalei uma bicicleta pelas ruas de São Paulo. Precisava registrar imagens da Bicicletada para o documentário da faculdade. Meu receio não era a violência do trânsito, a falta de educação ou de infraestrutura cicloviária. Naquele momento o desafio era o meu limite físico: nunca achei que tivesse condições de completar um rolê urbano de cerca de 20 quilometros. Mas não apenas fiz o trajeto sem sofrer um enfarte, como me senti muito bem e bastante empolgado com aqueles “malucos” que usavam a bicicleta sozinhos no cotidiano e se juntavam uma vez por mês para celebrar pedalando.
O Sociedade do Automóvel ficou pronto no início de 2005, foi disponibilizado para download na internet, circulou bastante pelo Brasil e teve um público especial nas escolas e universidades. Nessa época eu era um jornalista formado, regularmente desempregado e tinha acabado de vender meu carro. Descobri que a combinação de caminhada, transporte público, bicicleta e moradia em região central era muito mais barata, eficiente, divertida e cidadã que o ostracismo motorizado ao qual me sujeitei por sete anos da vida.
Em março de 2005 (caramba, lá se vão oito anos!) comecei a testar uma ferramenta chamada “blog”. Inspirado por um livro que havia sido referência para o vídeo da faculdade, pedi autorização ao autor e passei a usar o nome Apocalipse Motorizado no blog. Até abril de 2011 foram mais de 4 mil postagens, fotos, vídeos, “articulações e reflexões para superar a sociedade do automóvel”.
O blog caminhou junto com a Bicicletada e se alimentou bastante daquela experiência. Além de escrever sobre o tema, eu também havia começado a usar a bicicleta para os meus deslocamentos e não havia nada mais divertido do que encontrar malucos como eu uma vez por mês para “protestar” contra a tirania do automóvel e celebrar a mobilidade inteligente.
Esse movimento da primeira década do século XXI (falaremos dele nas próximas postagens), somado ao nosso amigo congestionamento, conseguiu dar força a algumas transformações importantes em São Paulo, impusionou elementos simbólicos e também concretos em favor da transformação da mobilidade urbana.
Em 2009 surgia a Ciclocidade, uma associação que tem como principal objetivo trabalhar por políticas públicas para usuários de bicicletas. Fui praticamente empurrado para o cargo de diretor e achei que seria difícil conciliar o papel de “blogueiro anônimo” e figura pública. Encarei o desafio e deixei o Apocalipse Motorizado dormindo. Além disso, nessa segunda década, muitas das reflexões que apareciam como “novidade radical” no Apocalipse Motorizado já começavam a se tornar normais, aceitáveis e até abundantes.
Aos que conheceram o trabalho no Apocalipse Motorizado, deixo o convite para que acompanhem o Bike é Legal (tem uma turma muito boa escrevendo aqui). Mas deixo um aviso: esta não é uma continuação do que estava lá. O cinema já ensina que as continuações geralmente são muito piores do que o filme original. Aos que nunca leram o antigo blog, muito prazer! E sejam todos bem vindos ao Bike é Legal!